terça-feira, 9 de outubro de 2012

O PRAZO PARA REPARAÇÃO DE DANOS POR INSCRIÇÃO INDEVIDA DO CONSUMIDOR EM CADASTRO DE INADIMPLENTES.

Flávio Tartuce.
Doutor em Direito Civil pela USP.
Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor da Escola Paulista de Direito e da Rede de Ensino LFG.
Advogado e Consultor Jurídico.

Conforme notícias recentemente veiculadas, o Superior Tribunal de Justiça concluiu pela aplicação do prazo geral de prescrição do Código Civil (art. 205, dez anos), para as demandas propostas por consumidores em decorrência da inscrição indevida em cadastros de inadimplentes.[1]
O Tribunal da Cidadania segue tendência anterior, de interação entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, pela linha da festejada teoria do diálogo das fontes.  Supera-se, assim, a ideia de que a Lei 8.078/1990 constitui um microssistema jurídico, totalmente isolado do Código Civil, como era pregado nos anos iniciais de vigência do Código do Consumidor.
A teoria do diálogo das fontes foi desenvolvida na Alemanha por Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg, e trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A essência da teoria é que as normas jurídicas não se excluem – supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se complementam. Há, nesse marco teórico, a premissa de uma visão unitária do ordenamento jurídico.
A principal justificativa que pode surgir para a teoria refere-se à sua funcionalidade. É cediço que vivemos um momento de explosão de leis, um “Big Bang legislativo”, como simbolizou Ricardo Lorenzetti. O mundo pós-moderno e globalizado, complexo e abundante por natureza, convive com uma quantidade enorme de normas jurídicas, a deixar o aplicador do Direito até desnorteado. Convive-se com a era da desordem, conforme expõe o mesmo Lorenzetti.[2] O diálogo das fontes serve como leme nessa tempestade de complexidade.
Relativamente às razões filosóficas e sociais da aplicação da tese, Claudia Lima Marques ensina que: 
“Segundo Erik Jayme, as características da cultura pós-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme denomina de ‘le retour des sentiments’, sendo o Leitmotiv da pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos (‘Zersplieterung’), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o “double coding”, e onde os valores são muitas vezes antinômicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos à diferença e ao tratamento diferenciado aos privilégios dos “espaços de excelência” (Jayme, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995, II, Kluwer, Haia, p. 36 e ss.).[3]
A primeira tentativa de aplicação da tese do diálogo das fontes se dá com a possibilidade de subsunção concomitante tanto do Código de Defesa do Consumidor quanto do Código Civil a determinadas relações obrigacionais, sobretudo aos contratos. Isso diante da conhecida aproximação principiológica entre os dois sistemas, consolidada pelos princípios sociais contratuais, sobretudo pela boa-fé objetiva e pela função social dos contratos. Por esta premissa é que se supera a ideia de que o Código Consumerista seria um microssistema jurídico, totalmente isolado.
Pois bem, Claudia Lima Marques demonstra três diálogos possíveis a partir da teoria exposta, diante do modelo brasileiro de coexistência e aplicação simultânea do Código de Defesa do Consumidor, do Código Civil de 2002 e da legislação especial.[4]
De início, em havendo aplicação simultânea das duas leis, se uma lei servir de base conceitual para a outra, estará presente o diálogo sistemático de coerência. Como exemplo, os conceitos e as regras básicas relativas aos contratos de espécie podem ser retirados do Código Civil mesmo sendo o contrato de consumo. Tal premissa incide para a compra e venda, para a prestação de serviços, para a empreitada, para o transporte, para o seguro, entre outros.
Ato contínuo, se o caso for de aplicação coordenada de duas leis, uma norma pode completar a outra, de forma direta (diálogo de complementaridade) ou indireta (diálogo de subsidiariedade). O exemplo típico ocorre com os contratos de consumo que também são de adesão, tema objeto deste artigo. Em relação às cláusulas abusivas, pode ser invocada a proteção dos consumidores constante do art. 51 do CDC e ainda a proteção dos aderentes constante do art. 424 do CC.
Por fim, os diálogos de influências recíprocas sistemáticas estão presentes quando os conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influências da outra. Assim, o conceito de consumidor pode sofrer influências do Código Civil de 2002. Como afirma Claudia Lima Marques, “é a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de doublé sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”.[5]
A busca de um prazo maior, previsto no Código Civil, para demanda proposta pelo consumidor constitui exemplo típico de incidência concomitante do segundo e do terceiro diálogo, uma vez que o Código do Consumidor não prevê prazo específico para a ação fundada em inscrição indevida em cadastro de inadimplementes. Não se pode socorrer diretamente ao art. 27 do CDC, que consagra prazo de cinco anos para a ação de reparação de danos em decorrência de acidente de consumo, pois tal comando não se enquadra perfeitamente à fattispecie. Dessa forma, o melhor caminho é de incidência do prazo geral de prescrição, de dez anos, consagrado pelo art. 205 do Código Civil de 2002.[6]
Cumpre destacar que tal tendência, de busca do prazo maior previsto no Código Civil já foi efetivada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua Súmula 412, que preconiza: “A ação de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto sujeita-se ao prazo prescricional estabelecido no Código Civil”.
Por fim, a notícia do STJ relata a incidência da teoria actio nata, tendo início o prazo prescricional a partir da ciência do dano e não do evento em si. De fato, a citada teoria é a que melhor se adapta ao Código de Defesa do Consumidor, podendo ser retirada do já citado art. 27 da Lei Consumerista.[7] Ademais, conforme  destacado em outras obras, a teoria actio nata tem relação direta com a boa-fé objetiva, um dos princípios fundantes da Lei n. 8.078/1990, diante da valorização da informação e da realidade dos fatos.[8] Nesses pontos, portanto, o STJ fez o seu papel de Tribunal da Cidadania.    



[2] Todos os referenciais do jurista argentino constam em: LORENZETTI, Ricardo Luís. Teoria da decisão judicial. Trad. Bruno Miragem. Com notas e revisão de Claudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2009.
[3] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIM, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 30.
[4] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIM, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 3ª Edição, 2010. 108-122
[5] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIM, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 3ª Edição, 2010. 1114.
[6] CC/2002. “Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.
[7] Veja-se, com destaque, a actio nata: “Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”.
[8] Conforme exposto em: TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. São Paulo: GEN/Método, 2011; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 1. Lei de Introdução e Parte Geral. São Paulo: GEN/Método, 7ª Edição, 2011. 

 Artigo retirado do site: http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigos

DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO: DILAÇÕES DEVIDAS E INDEVIDAS

Salomão Viana[1] e Pablo Stolze Gagliano[2]

1.           Consideração introdutória.

              A duração razoável do processo é uma das garantias mínimas que estruturam a cláusula geral[3] do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).  Por meio dela, é assegurado o direito fundamental a um processo sem dilações indevidas.

              E se a razoabilidade do prazo de duração de um processo está atrelada à inexistência de dilações indevidas, é inevitável reconhecer que há dilações que são devidas.

              O nosso objetivo, neste artigo, é fixar bases que contribuam para a identificação dos traços distintivos entre as dilações processuais devidas e as indevidas.


2.           Duração razoável do processo no sistema normativo constitucional.

              A inserção da referência expressa à duração razoável do processo no texto da Constituição da República se deu por força da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, que acrescentou o inciso LXXVIII ao art. 5º: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

              Independentemente da data da inserção no texto da Constituição Federal, a verdade é que o direito fundamental à duração razoável do processo de há muito já estava assegurado pelo sistema normativo constitucional.

              Efetivamente, a conclusão a respeito da existência dessa garantia pode ser extraída a partir da análise, pela ótica temporal, da garantia da inafastabilidade da jurisdição, que, igualmente, integra o elenco das garantias mínimas que estruturam a cláusula geral do devido processo legal.  

              Como sabido, a garantia da inafastabilidade da jurisdição é antiga no nosso sistema jurídico e a sua materialização somente é possível se o Estado puder prestar uma tutela jurisdicional adequada ao caso sob apreciação.

              Diante disto, não é preciso qualquer esforço para se concluir que a prestação de uma tutela jurisdicional adequada pressupõe uma adequação temporal, de modo que se o processo houver sido submetido a dilações indevidas, não terá havido uma adequada tutela.

              Assim, é fácil inferir que a duração razoável do processo é, em última análise, corolário do devido processo legal e consequência lógica da garantia da inafastabilidade da jurisdição.  Por tais motivos, a sua integração ao sistema normativo constitucional é, repita-se, anterior à inserção, no texto da Constituição da República, do inciso LXXVIII do art. 5º.

              Além disto, o Pacto de São José da Costa Rica, assinado em 22 de novembro de 1969, tendo entrado em vigor internacional em 18 de julho de 1978 e, para o Brasil, em 25 de setembro de 1992[4], dispõe, expressamente, no seu artigo 8, item 1, ao tratar das chamadas garantias judiciais, que os "direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza" devem ser determinados "com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável".  A mencionada convenção internacional, de aplicação imediata, tem eficácia equivalente à de uma emenda constitucional (CF, art. 5º, §§ 1º a 3º).

              A conclusão, portanto, é a de que o direito fundamental a um processo sem dilações indevidas não passou a ser assegurado a partir da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004.  Trata-se de uma antiga garantia constitucional.

             
3.           Reflexos da duração razoável do processo nas atividades cognitiva e executiva[5].

              Nenhuma dúvida pode haver de que todo processo deve ter duração razoável. 

              O que é preciso ficar claro, porém, é que a atenção ao aspecto temporal não pode, em nenhuma hipótese, desestimular a coragem para remover os óbices formais passíveis de extirpação, de modo a que as questões que integram o mérito da causa sejam resolvidas. 

              Ao lado disso, a duração razoável do processo não pode se limitar à composição formal do conflito de interesses.  Ela deve também ser observada durante a prática dos atos de natureza executiva, voltados para a efetiva entrega do bem da vida ao seu titular.


3.1         Prazo razoável para a completa resolução das questões que integram o mérito da       causa.

              Não é suficiente que se preconize, apenas, que os processos devam ter duração razoável, uma vez que é socialmente antieconômica a rápida tramitação de um processo que chegue ao fim sem que as questões que integram o mérito da causa sejam apreciadas, quando se constatar que, com mais algum esforço, os embaraços à completa e justa apreciação do mérito podem ser removidos.

              Assim, na resolução das questões que envolvam a razoabilidade da duração do processo, deve-se, sempre, levar em consideração as situações em que, com mais algum dispêndio de energia – e, portanto, inevitavelmente, de tempo – for possível afastar eventuais óbices formais para que as questões que integram o mérito da causa possam ser resolvidas.

              Neste passo, é de suma importância anotar que este direito é indissociável do dever, de todos os sujeitos da relação jurídica processual – aí incluídas, por óbvio, as partes –, de cooperar para que para que se obtenha, com efetividade e em tempo razoável, a justa solução do mérito da causa.

              Por isto, é inelutável a conclusão de que a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo exige que todos os integrantes da relação jurídica processual cooperem para que os eventuais óbices à admissibilidade do exame do mérito sejam superados e que, com isto, as questões que integram o mérito da causa sejam, todas elas, resolvidas num prazo aceitável.


3.2.        Prazo razoável para a entrega do bem da vida ao seu titular.

              Mais do que resolver as questões que integram o mérito da causa, também a atividade satisfativa – aquela que se dá por meio dos diversos procedimentos executivos – deve ser levada a cabo dentro de um prazo moderado.

              Assim, se a resolução das questões que integram o mérito da causa implicar a prática de atos voltados para a satisfação do direito cuja existência foi certificada, o cumprimento da obrigação consubstanciada no título executivo judicial também deverá se dar em prazo razoável.  O mesmo deverá ocorrer com a execução fundada em título extrajudicial.

              Aqui, igualmente, não é possível olvidar o vínculo indissociável entre este direito e o dever – a ser cumprido também pelas partes –, de cooperar para a efetividade do processo.

              É com base no dever de cooperação que o legislador, por exemplo, considera atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que, intimado, não indica ao juiz, no prazo de cinco dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos a penhora, declinando os seus respectivos valores (CPC, art. 600, IV).


4.           Critério para avaliação da razoabilidade do prazo de duração do processo.

              Desborda os limites do nosso objetivo a realização de um exame aprofundado a respeito do postulado da razoabilidade[6] e de uma das suas aplicações no campo processual, especificamente no que concerne à duração do processo.

              Neste ponto, cumpre registrar, apenas, que a avaliação da razoabilidade do prazo de duração de um processo está a anos-luz de distância da simples operação aritmética consistente na soma dos prazos previstos nas normas de regência para que seja praticado um conjunto padrão de atos, compreendido, por exemplo, entre o momento da propositura da demanda e o ato final do procedimento[7].

              Com efeito, a análise da razoabilidade da duração de um processo somente pode ser feita à luz da chamada doutrina do não-prazo[8], segundo a qual o prazo razoável para que a justiça seja realizada é aquele necessário e suficiente para que uma decisão justa seja proferida no caso concreto.      

              Diante disto, alguns aspectos de ordem eminentemente prática devem ser pontuados, de modo a permitir a identificação de bases lógicas para avaliar, num caso concreto[9], se a dilação a que está submetido um processo pode ser considerada devida ou indevida.


4.1         Dilações processuais devidas.
             
              A duração do processo não deixará de ser razoável se, apesar de ele se alongar, o alongamento resultar de fatores inevitáveis.

              É que, na irrefutável lição de FREDIE DIDIER JR., "o processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgão jurisdicional".  Com efeito, ao se reconhecer "a existência de um direito fundamental ao devido processo, está-se reconhecendo, implicitamente, o direito de que a solução do caso deve cumprir, necessariamente, uma série de atos obrigatórios, que compõem o conteúdo mínimo desse direito.  A exigência do contraditório, o direito à produção de provas e aos recursos certamente atravancam a celeridade, mas são garantias que não podem ser desconsideradas ou minimizadas.  É preciso fazer o alerta, para evitar discursos autoritários, que pregam a celeridade como valor.  Os processos da Inquisição poderiam ser rápidos.  Não parece, porém, que se sinta saudade deles"[10].

              À vista disto, e sem a fantasia de elaborar uma sistematização completa, é de todo útil fazer referência às principais dilações processuais que, por inevitáveis, são devidas.

              Elas podem ser divididas em quatro grupos: (i) o das dilações resultantes do exercício de direitos constitucionalmente assegurados; (ii) o das dilações resultantes da prática de atos obrigatórios, (iii) o das dilações resultantes de circunstâncias endoprocessuais e (iv) o das dilações resultantes de circunstâncias exoprocessuais.


4.1.1      Dilações resultantes do exercício de direitos constitucionalmente assegurados.

              A ordem constitucional assegura a todos os sujeitos da relação jurídica processual interessados na construção do panorama no qual será proferida uma decisão, qualquer que seja ela, o exercício, na plenitude, do direito ao contraditório, do direito à produção de provas e do direito de recorrer. 

              Por óbvio, a prática dos atos indispensáveis para que tais direitos sejam exercitados implica dispêndio de tempo. 

              Assim, toda dilação processual resultante do exercício de direitos constitucionalmente assegurados é, na essência, uma dilação devida.


4.1.2      Dilações resultantes da prática de atos obrigatórios.

              Como sabido, o processamento de uma causa impõe a prática de atos obrigatórios, para os quais há prazos legalmente previstos.  A necessidade da prática de tais atos decorre, em geral, da busca da segurança jurídica.

              É o que se dá, por exemplo, quando o sistema jurídico determina que, do processo, participe o Ministério Público, na qualidade de fiscal da ordem jurídica (art. 82).  Neste caso, em cada oportunidade de abertura de vista dos autos, o prazo para manifestação do Ministério Público somente tem início depois que o seu representante for pessoalmente intimado.

              Também são exemplos de atos obrigatórios, geradores de dilações devidas, voltados para a preservação da segurança jurídica, a nomeação de curador especial ao réu revel citado por edital ou com hora certa, enquanto não constituir advogado (art. 9º, II), e a fixação, pelo juiz, na citação por edital, do prazo editalício, que varia entre vinte e sessenta dias (art. 232, IV).

              O só fato de ser realizada uma perícia no curso de um procedimento pode importar a prática de significativa sequência de atos obrigatórios.  

              Efetivamente, nomeado o perito, as partes devem ser intimadas para indicar assistentes técnicos e apresentar quesitos (art. 421, § 1º), estando o início das diligências e/ou exames a cargo do expert vinculado à prévia ciência, às partes, da data e do local para tanto designados (art. 431-A). 

              Acresça-se, a este quadro, a possibilidade de apresentação de quesitos suplementares (art. 425) e de quesitos explicativos (art. 435), além da apresentação, pelos assistentes técnicos, dos seus respectivos pareceres sobre o laudo (art. 433, parágrafo único).

              São plenamente perceptíveis, pois, os fortes reflexos que a produção da prova pericial produz sobre a duração de um processo, ainda mais se se tornar necessária uma segunda perícia sobre os mesmos fatos (arts. 437 e 438).  Assim, não é possível – definitivamente, não é possível – negar que as dilações daí resultantes sejam devidas.

              Nesta mesma linha, há inúmeros atos obrigatoriamente praticados pelos auxiliares da justiça, como a lavratura dos diversos termos (art. 168), a elaboração de ofícios, mandados e cartas e o envio, ao réu citado com hora certa, de carta ou telegrama (art. 229).

              E não só ao escrivão ou ao chefe de secretaria judicial incumbe praticar atos obrigatórios, pois é possível que atos deste tipo fiquem a cargo, por exemplo, do oficial de justiça, do perito, do depositário, do administrador, do intérprete, do tradutor, do conciliador judicial, do partidor, do distribuidor e do contabilista.

              A conclusão, pois, é uma só: se a dilação processual for fruto da prática de atos obrigatórios, tratar-se-á, obviamente, de dilação devida.


4.1.3      Dilações resultantes de circunstâncias endoprocessuais.

              Ao lado das dilações processuais que decorrem do exercício de direitos constitucionalmente assegurados e da prática de atos obrigatórios, é encontradiça a dilação fruto da ocorrência de situações peculiares a determinados processos, em certas etapas do procedimento.  Estas são as dilações resultantes de circunstâncias internas.  Endoprocessuais, pois.

              De fato, há processos com peculiaridades que fatalmente conduzem a um procedimento mais longo, e nem por isto de duração irrazoável.

              Dentre as várias situações que poderiam ser listadas, a complexidade da matéria fática, a formação de litisconsórcios, a multiplicidade de substituídos processuais e a sucessão da parte em razão de morte ocorrida no curso do procedimento, pela frequência com que ocorrem, assumem especial importância, pois, quando estão presentes, invariavelmente produzem forte dilação processual.

              As dilações ocorridas nestes casos, como veremos, são devidas.

              Quanto à complexidade da matéria fática, está ela indissoluvelmente agregada ao direito fundamental à produção de provas, o que conduz, invariavelmente, a uma sequência mais longa de atos instrutórios, com repercussão na duração do processo.

              Quadros como este ocorrem, por exemplo, quando é indispensável a produção de uma prova pericial complexa, que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, caso em que pode ser nomeado mais de um perito, com a consequente multiplicação do número de assistentes técnicos (art. 431-B).  O mesmo se dá quando se faz necessária a ouvida de significativo número de testemunhas.

              Tais situações se agravam ainda mais quando surgem incidentes instrutórios, como a escusa do perito ou a sua recusa pelas partes (art. 423), e quando há necessidade de cooperação jurídica nacional, por meio da expedição de cartas de ordem ou precatória, ou, o que é ainda mais grave, internacional, por intermédio da expedição de carta rogatória (arts. 202 a 212).

              A formação de litisconsórcios também tem inegável potencial para produzir situações de dilação devida, mesmo que possa ser limitado o número de litisconsortes (art. 46, parágrafo único).  É que, independentemente da espécie de litisconsórcio, a cada um dos litisconsortes devem ser assegurados os direitos ao contraditório, à produção de provas e ao uso das vias recursais, o que, por óbvio, tem amplo potencial para gerar aumento no número de atos do processo.

              Outrossim, a experiência demonstra que nos autos em que há muitos substituídos processuais são fortes as chances de ocorrência de dilações devidas, mormente quando são discutidos direitos individuais homogêneos.  Em processos deste tipo, significativa parcela do tempo comumente ganho na resolução das questões que integram o mérito da causa, durante a etapa da certificação do direito (afinal, por meio de um só julgamento, diversos conflitos individuais são resolvidos), é, depois, perdida com dilações devidas, na etapa da entrega do bem da vida a cada um dos titulares, tendo em vista que o comum é a existência de multiplicidade de situações individuais, a exigir do órgão julgador tratamento individualizado.

              Por fim, se no curso do procedimento ocorrer a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou por aqueles que forem identificados como seus sucessores (art. 43), o que implica, quase sempre, a suspensão da prática dos atos do procedimento (art. 265, I).  Fatos como este conduzem à necessidade de demonstração da regularidade da representação processual do espólio e/ou da exibição do título de sucessor, o que importa na prática de atos que fatalmente geram dilação processual.  A dilação, neste caso, é, a todos os olhos, devida.


4.1.4      Dilações resultantes de circunstâncias exoprocessuais.

              Há circunstâncias externas ao processo – exoprocessuais, portanto – que, por mais que fosse desejável que não ocorressem, não podem ser esquecidas. 

              Demais disso, a sua inevitabilidade, quando considerado o caso concreto, leva a que as pessoas de bom senso concluam pela razoabilidade da distensão temporal do processo.

              Situações deste tipo comumente atingem as partes, os seus procuradores, os membros do Ministério Público, os auxiliares da justiça e o órgão julgador.

              Assim é que, no que se refere às partes e aos seus procuradores, não é rara a ocorrência de situações em que a prática de um ato processual pela parte, por intermédio do seu procurador, provoca dilação.  Imagine-se, apenas a título de exemplo, que uma das partes, apresentando justo motivo, requeira a remarcação da data em que se realizará uma audiência ou que a parte a quem interessa a intimação pessoal, por mandado, de alguém, requeira ao juiz, motivadamente, mais prazo para que possa ela obter o endereço em que a diligência deverá ser cumprida.

              Quanto ao Ministério Público, também não é incomum que situações inevitáveis sejam por ele protagonizadas, tal como se dá quando, em razão da falta de provimento de cargos, um só membro da instituição esteja atuando junto a mais de um órgão julgador.  Este quadro, por vezes, resulta em dilações processuais. Basta lembrar que a impossibilidade de comparecimento do representante do Ministério Público gera a frustração da realização de audiências em processos nos quais a participação do órgão é indispensável.

              De sua vez, não se ignora que a atuação do órgão jurisdicional – aí incluídos os auxiliares da justiça e os magistrados – é, de longe, o fator mais apontado como causa de dilações processuais indevidas.

              Todavia, o bom senso repugna que a dilação resultante da inércia pura e simples – aquela inércia patológica, consequência do ócio, da indolência – seja confundida com a impossibilidade fática facilmente identificável pela presença de fatores objetivos.

              Há impossibilidade fática objetiva, por exemplo, quando magistrados respondem por mais de um órgão julgador simultaneamente.  Isto pode se dar quando se torna ele responsável pela condução dos trabalhos em mais de uma unidade, todas situadas na mesma base territorial ou, o que é ainda pior, em bases territoriais distintas. 

              Também a acumulação das atividades jurisdicionais comuns com a jurisdição eleitoral tem forte potencial para gerar dilações, ainda mais se se considerar que, de um modo geral, as demandas eleitorais, por força de lei, devem ser processadas com preferência sobre as demandas cíveis[11].

              Em acréscimo, por mais que sejam registradas incompreensões por aqueles que apenas conhecem o Poder Judiciário externamente, é impossível negar que se houver excesso de processos em curso as dilações processuais daí decorrentes são, sim, justificáveis.

              Por óbvio, o excesso de que se trata não pode ser aquele que é fruto da falta de boa vontade do magistrado para julgar.  De fato, se a baixa produtividade for motivada pelo descaso no cumprimento dos deveres funcionais e o excesso de processos decorrer desse quadro indesejável, as dilações resultantes dessa circunstância externa não podem, jamais, ser consideradas devidas.

              Situação completamente distinta, porém, é a que é fruto da impossibilidade de a administração judiciária prover determinada base territorial com mais órgãos julgadores e/ou com mais auxiliares da justiça, sobrecarregando a estrutura existente, insuficiente para atender à demanda. 

              As dilações processuais resultantes desse conjunto, por mais que, no plano da administração da justiça, possam ser rotuladas de indevidas (afinal, os jurisdicionados não podem ser responsabilizados pela falta de estrutura do Poder Judiciário), são, quando examinadas no contexto específico em que o processo está tramitando, inegavelmente justificáveis e, por isto mesmo, devidas.      


4.2         Dilações processuais indevidas.

              A ausência de razoabilidade no prazo de duração de um processo se caracteriza pela ocorrência de dilações indevidas.

              Assim, de um lado, a duração do processo não deixará de ser razoável se, apesar de ele se alongar, o alongamento resultar de fatores inevitáveis.  De outro, entretanto, não haverá razoabilidade se as causas das dilações puderem ser evitadas.

              Por isto, cabe ao magistrado, ao membro do Ministério Público ao atuar como fiscal da ordem jurídica, aos Defensores Públicos, aos advogados, às partes, a todos os auxiliares da justiça e a quem mais participe, de qualquer forma, do processo, adotar todas as providências para que o procedimento não se submeta a dilações indevidas.

              Tais providências podem ser resumidas no cumprimento, pelos diversos sujeitos da relação jurídica processual, do dever de cooperação.

              De fato, a maior ou menor disposição, dos diversos sujeitos do processo, para cooperar entre si e com o Poder Judiciário, repercute fortemente no prazo de duração do procedimento.

              Não é por outro motivo que o modelo processual traçado no CPC impõe que todos cumpram o dever de cooperação, zelando por uma atmosfera processual em que predominem as garantias mínimas que estruturam a cláusula geral do devido processo legal, a boa-fé objetiva processual e o contraditório adequadamente redimensionado.

              A falta de predomínio dessa atmosfera de cooperação contribui, decisivamente, para que as questões que integram o mérito da causa não sejam resolvidas num prazo razoável e também para que não seja razoável o prazo para que chegue ao fim a atividade satisfativa.

              O clima de excessiva litigiosidade entre as partes, a prática de atos contrários à boa-fé objetiva processual, o descumprimento injustificável de prazos, a má estruturação da forma de prestação dos serviços judiciários e a inércia pura e simples do aparelho estatal são as causas mais comuns de dilações processuais indevidas.


5.           Conclusão.

              Pelo exposto, diante de uma questão que envolva o tempo necessário para o término da atividade processual, independentemente de tratar-se de atividade cognitiva ou executiva, é indispensável que o operador do Direito, ao lado de estar ciente de que a duração razoável do processo é uma das garantias mínimas que estruturam a cláusula geral do devido processo legal, perscrute, escrupulosamente, as causas que conduziram ao dispêndio do tempo.

              Nessa investigação, é fundamental que as dilações processuais indevidas, fruto de motivos que podem ser evitados, sejam divisadas das dilações processuais devidas, que resultam de fatores inevitáveis e objetivamente identificáveis.


[1] Juiz Federal (BA), especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, professor da Universidade Federal da Bahia.
[2]Juiz de Direito (BA), mestre em Direito Civil pela PUC-SP, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia,  professor da Universidade Federal da Bahia e da Rede LFG.
[3] Na estrutura de todo texto normativo é identificável uma hipótese fática (um acontecimento, ou um conjunto de acontecimentos, natural ou humano) à qual o sistema jurídico atribui um efeito, o efeito jurídico. Diz-se, assim, que a hipótese fática é o antecedente e o efeito jurídico é o consequente.  Quando o texto normativo contiver uma hipótese fática composta por termos vagos e o efeito jurídico for apenas determinável, e não previamente determinado, diz-se que ele contém uma cláusula geral.  A norma que impõe que toda relação jurídica processual deva estar em consonância com o princípio do devido processo legal é o mais evidente exemplo de cláusula geral no âmbito do Direito Processual. O mesmo se dá com a norma que impõe a todos que participam do processo uma conduta de acordo com a boa-fé.  Se imaginarmos uma linha reta, os textos normativos que contêm cláusulas gerais estarão numa extremidade dessa linha, ao passo que as regras casuísticas ocuparão o outro extremo.  Exemplo de regra casuística é a que impõe que os honorários advocatícios sucumbenciais serão fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% sobre o valor da condenação (CPC, art. 20, § 3º).  Nos modernos sistemas jurídicos o grande exercício do legislador é buscar um equilíbrio entre as cláusulas gerais e as regras casuísticas, com a produção de normas que ocupem, lógica e ordenadamente, o longo trajeto entre os pontos extremos daquela linha reta imaginária a que nos referimos.
[4] Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, da Presidência da República, que promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, publicado no Diário Oficial da União de 9 de novembro de 2011 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm, acessado em 18 de setembro de 2012).
[5] É proposital a falta de referência à atividade cautelar, já que nela o magistrado também lança mão da cognição.  Com efeito, enquanto nos procedimentos de conhecimento não há restrição à percepção do magistrado no plano vertical, motivo pelo qual a técnica de que ele se vale para analisar e solucionar questões é a da cognição profunda (ou exauriente), no processo cautelar a técnica cognitiva poderá ser, em certos momentos, sumária (ou perfunctória) e, em outros, superficial (ou rarefeita).  Há, pois, atividade cognitiva.  Demais disso, no procedimento cautelar também são praticados atos de natureza executiva.
[6] Para um estudo a respeito dos princípios, das regras e dos postulados normativos é indispensável a leitura de Humberto Ávila (Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 13ª edição. SP: Malheiros, 2012).
[7] "A Corte Europeia dos Direitos do Homem firmou entendimento de que, respeitadas as circunstâncias de cada caso, devem ser observados três critérios para se determinar a duração razoável do processo, quais sejam: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento dos litigantes e dos seus procuradores ou da acusação e da defesa no processo; c) a atuação do órgão jurisdicional" (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, 13ª edição. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 64).  Nesta linha, JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI pontua que "O reconhecimento desses critérios traz como imediata consequência a visualização das dilações indevidas como um conceito indeterminado e aberto, que impede de considerá-las como o simples desprezo aos prazos processuais pré-fixados" ("Garantia do processo sem dilações indevidas". Garantias constitucionais do processo civil. SP: RT, 1999, pp. 239-240 – esgotado –, apud DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, 13ª edição.  Salvador: JusPodivm, 2011, p. 64).
[8] A respeito da doutrina do não-prazo é útil uma pesquisa em torno da atuação da Corte Europeia de Direitos Humanos, que vem se dedicando a estipular critérios objetivos para julgar os casos em que são imputadas a países europeus condutas geradoras de dilações processuais indevidas, com risco à efetivação de direitos fundamentais.
[9] Ao tratar da primeira entre as três acepções de razoabilidade que, no seu entender, merecem destaque, pontifica Humberto Ávila: "Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral" (Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 13ª edição. SP: Malheiros, 2012, p. 173).
[10] DIDIER JR., Fredie.  Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, 13ª edição.  Salvador: JusPodivm, 2011, p. 64.
[11] V. g. das normas contidas no art. 94 e seus §§ da Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, e no art. 26-B e seus §§ da Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990.

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