Michelly Regina Viau FERNANDES[1]
[2]
RESUMO
O presente artigo versa sobre a
responsabilização dos sócios na seara contratual, tendo em vista que a pessoa
jurídica passa a ser o núcleo referencial para regular um conjunto complexo de
relações jurídicas que envolvem diversos vínculos entre o sócio e a sociedade,
entre a sociedade e terceiros e entre os próprios sócios mediante espécie de um
ordenamento jurídico privado, o contrato social. Este, por sua vez, submete-se
a um ordenamento jurídico superior composto por normas que regulamentam os
limites do que pode ser contratualmente estipulado e que também fornece outro
conjunto de normas que regulam as diversas hipóteses que o legislador entendeu
não deixar ao alvedrio dos sócios, em especial, a responsabilização destes.
Assim quando os sócios aderem ao contrato social, assumem que estão sujeitos
aquele regime normativo.
Palavras-chave: Sócio- Contrato Social-
Sociedade- Responsabilização
Considerações
iniciais
Basicamente a estrutura da
responsabilidade civil advém da concepção clássica de proteção ao lícito e
repressão ao ilícito. Nos primórdios da civilização havia a vingança privada e
o princípio clássico “olho por olho, dente por dente”, ou seja, reparava-se o
mal com outro mal. Dias destaca que “a princípio, o dano escapa ao âmbito do
direito; domina então, a vingança privada” . (Dias, 1987, p.19).
Em verdade, todos os atos
praticados em sociedade geram algum tipo de responsabilidade, todavia, o que
realmente interessa quando se fala em responsabilidade é aprofundar o problema
na face assinalada, de violação da norma ou obrigação diante da qual se
encontrava o agente.
Reis (1998, p.10) afirma “que
a primeira noção do dano e da sua reparação está no Código de Hamurabi:
“A primeira noção que
se tem conhecimento na história da civilização a cerca do dano e sua reparação,
através de um sistema codificado de leis, surgiu na Mesopotâmia através de Hamurabi.
(...) o texto do Código demonstra uma preocupação de Hamurabi em conferir ao
lesado uma reparação equivalente. (Reis, 1998. p. 10, sem grifos no original)
Nessa fase, a reparação pelo
dano recaia geralmente sobre o corpo do ofensor, que era retaliado na medida da
ofensa praticada. A essa fase sucede a de reparação mediante pagamento de uma
espécie de resgate, embora Reis destaque, que mesmo no Código de Hamurabi já se
previa “a reparação do dano a custo de pagamento de um valor pecuniário”, e que
seu objetivo era, além da satisfação patrimonial, impedir o sentimento de
vingança que poderia contrariar o sentimento de “unidade e harmonia do grupo
social”. (Reis, 1998, p.10-11).
Merece menção o Código de
Manu que tinha como diferença em relação ao de Hamurabi o fato de que naquele a
vítima era ressarcida “as expensas de um certo valor pecuniário, arbitrado pelo
legislador”, enquanto neste “ a vítima ressarcia-se a custa de outra lesão
levada a efeito no lesionador”. (Reis, 1998, p.12).
Mas foi no Direito Romano
que a matéria ganhou melhor tratamento, através da Lei das XII Tábuas, da Lex
Aquillia3 e da legislação justiniana, culminando na orientação
segundo a qual podiam reclamar uma reparação consistente sempre em uma soma de
dinheiro prudentemente arbitrada pelo juiz. O arbitramento por um juiz ou
legislador permite verificar que o Estado, ainda que em sua forma primitiva,
passa a compor os litígios entre ofensor e ofendido, buscando a reparação dos
danos causados a este e a sanção daquele.
COMIN (2007, p. 211) afirma
que ainda em evolução a responsabilidade civil experimenta a ideia de restrição
dos atos ilícitos que o Estado considera relevantes. Historicamente a evolução
principia com a responsabilidade subjetiva clássica, baseada na culpa, passando
para a responsabilidade subjetiva com culpa presumida, até chegar a
responsabilidade objetiva. O estágio atual da responsabilidade civil demostra
que prevalece no Brasil o aspecto compensatório da indenização derivada das
hipóteses de responsabilidade civil, todavia não é possível deixar de mencionar
os aspectos punitivos e preventivos para conferir à reparação um fator de
desestímulo ao agente para que não pratique atos que violem o direito de outrem
novamente.
1.
Responsabilidade
Objetiva
A modernização da sociedade
trouxe a luz situações em que é difícil ou impossível para o ser humano comum
auferir o elemento culpa, tanto que se evoluiu da culpa provada para a culpa
presumida até se chegar a teoria da responsabilidade objetiva.
Dias (1987) destaca que a
teoria da responsabilidade objetiva tem o mérito de enfrentar a questão da
reparação do dano, cujo problema está na afirmação de que o seu fundamento “não
se poderia encontrar senão no delito e que, portanto, sempre se deparasse uma
responsabilidade sem delito, conviria de qualquer forma, imaginá-lo”. E mais
adiante afirma que “a doutrina do risco tem, pelo menos, o mérito de se
inteirar daquele equívoco e, se é passível de crítica, esta por certo não
reside no fato de contradição. Corresponde em termos científicos, a necessidade
de resolver casos de danos que pelo menos com acerto técnico não seriam
reparados pelo critério clássico de culpa”.
No Direito Brasileiro a
responsabilidade objetiva está embasada na teoria do risco, que foi
recepcionada pelo Código Civil no artigo 927, parágrafo único, que diz “haverá
obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados
em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”.
Cumpre ponderar se a criação
de uma estrutura societária que prevê a responsabilidade limitada dos sócios
faz parte dessa evolução e se a teoria do risco deve ser aplicada, afinal, os
sócios gozam de uma vantagem relevante, ao não serem em regra, responsabilizados
por atos que são tomados como originariamente praticados por uma sociedade, ou
seja, uma pessoa jurídica autônoma que não se confunde com a pessoa dos sócios
que ficam, assim, protegidos dos efeitos que o descumprimento das obrigações
acarreta. Em regra a resposta tende a negar a possibilidade da aplicação da
teoria do risco, pois isso importaria romper o sistema da responsabilidade
limitada dos sócios.
No caso do Direito
Societário, o Código Civil trata da responsabilidade objetiva, embora use a
expressão empresa no sentido de sinônimo de sociedade, ao dizer que
“ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais
e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos
produtos postos em circulação”. Todavia, essa disposição trata da
responsabilidade objetiva da sociedade (empresa) por danos que decorram do
produto que colocam à comercialização, ou seja, mais próxima da questão do
consumidor e seu regime de proteção, repetindo, em parte, disposição que já
consta da lei especial.
A responsabilidade objetiva
da sociedade não importa rompimento, a priori, do sistema de responsabilidade
limitada dos sócios, prevista no Código Civil, dando margem, quando muito, à
aplicação do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor que trata
especificamente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Embora
através dessa teoria, seja possível atingir a pessoa dos sócios, isso não
ocorre por conta da aplicação direta da teoria da responsabilidade civil objetiva.
Couto de Castro afirma que a
equação para a responsabilidade objetiva e também aborda duas teorias do risco:
“(...) de um lado, o
responsável pela condutassem falha, mas que provocou o dano; de outro lado, o
lesado, a vítima, que normalmente também não terá agido com culpa. Se nenhum
dos dois é culpado, é socialmente mais justo atribuir o ônus indenizatório
àquele que cria o risco (teoria do risco criado) e, outras vezes mais ainda,
provoca o risco e daí obtém um proveito (teoria do risco proveito)”. (Castro,
p.33, sem grifos no original).
Apesar de pequenas variações
nas teorias é possível verificar que basta que se configure o dano a partir de
uma ação ou omissão para ficar caracterizado o dever de indenizar,
independentemente do elemento culpa.
2.
A
importância do princípio da boa-fé na responsabilidade civil dos sócios
Humberto Teodoro Júnior, em
obra anterior ao Código Civil atual, destacava a posição do princípio da boa-fé
como um princípio geral de direito aplicável independentemente de sua positivação:
“Muitos códigos são
expressos em afirmar que os contratos devem ser pactuados e executados segundo
o princípio da boa-fé. Nosso Código não contém norma específica sobre o tema,
mas a doutrina e a jurisprudência entendem, à unanimidade que dito princípio
prevalece entre nós, como princípio geral de direito”. (THEODORO JUNIOR,
Humberto. 1999, p.31).
Em que se pese se tratar de
uma regra de fundo ético, que prescinde de qualquer normatização, constou
expressamente do art. 422 do Código Civil de 2002: “Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé”.
No caso da pessoa jurídica
sociedade limitada, esta confere aos sócios o direito de limitarem a sua
responsabilidade ao valor das quotas. Assim, a violação de uma obrigação pela
sociedade e a responsabilidade patrimonial consequente encontram aquele
anteparo que, a priori, é intransponível.
Sendo a sociedade limitada a
criação do engenho humano, à qual é atribuída uma personalidade que lhe permite
ter autonomia e capacidade distinta da dos sócios, estes, desde a sua criação
devem observar o princípio da boa-fé. Não se trata tão somente da sociedade
observar tal princípio, pois essa obrigação é dos sócios também, na medida em
que usufruem de um mecanismo jurídico diferenciado, que pressupõem sejam
atendidas certas premissas, em especial, que a sociedade se dedique ao seu
objeto social, para gerar empregos, pagamento de tributos e contribuições e
assim colabore para o desenvolvimento da comunidade.
Transpondo essa orientação
para o Direito Societário tem-se que destacar o fato de que o contrato social
da sociedade limitada, embora firmado entre sócios, espraia seus efeitos sobre
terceiros, no caso destaca-se a posição dos credores. Daí emerge que os sócios
devem atuar com lealdade e confiança, não somente entre si, nas relações
internas da sociedade, mas também nas relações externas quando fazem uso da
sociedade.
Portanto, a utilização de
uma pessoa jurídica, em especial daquelas sociedades que limitam a
responsabilidade dos sócios, contra a finalidade para qual foi constituída,
importa violação do princípio da boa-fé.
No caso a aparência precisa
ser observada com atenção. Uma sociedade limitada atua aparentemente em no me
próprio no momento de contrair suas obrigações, ela goza da autonomia
obrigacional que o Direito lhe concedeu quando lhe outorgou personalidade
jurídica. Se há uso disfuncional, em desconformidade com a função precípua para
a qual foi criada, tem-se abuso do direito de constituir e utilizar a
sociedade. Esse tipo de pratica viola o princípio da boa-fé que orienta todos
os jurisdicionados na formação de seus negócios jurídicos. Mutatis Mutandis
isso se aplica à sociedade limitada porque ao formarem o contrato social
fixaram regras que envolvem a execução de um determinado fim, de um determinado
objeto, que precisa ser rigorosamente respeitado para que continuem a ter a
limitação da responsabilidade, sob pena de se permitir avançar para a realidade
que está subjacente à estrutura jurídica denominada sociedade.
Noronha
(1999, p.136) afirma que “A boa fé que deve orientar os sócios de uma sociedade
é de natureza objetiva estando amparada nos primados da lealdade e da confiança”.
Capelo
de Souza (1995, p.530), ao enfrentar o tema abuso do direito geral de
personalidade por violação da boa-fé e doa bons costumes, destaca os critérios
que orientam a dinâmica da tutela geral no caso do exercício abusivo de um
direito. Ele destaca que trata de um valor recebido pela ordem jurídica: “O
direito geral de personalidade é sindicável nos termos gerais do art. 334 CC,
também quando seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé
e pelos bons costumes”.
As
considerações acima sobre abuso de direito, direitos da personalidade
confiança, portanto, servem para demonstrar que em relação a pessoa jurídica
sociedade limitada há espaço para a aplicação do princípio geral da boa-fé o
qual deve nortear a conduta dos sócios desde o momento que antecede a formação
de uma sociedade e durante toda a vida desta.
3. O sócio na sociedade limitada
Como ensina Coelho (2007,
p.366), “ a história da sociedade limitada é pequena e pobre”. Os autores
divergem no sentido de que ela surgiu como uma forma de atender os pequenos e
médios empreendedores que não podiam ter acesso à estrutura complexa de uma
sociedade anônima, mas que gostariam de praticar suas atividades econômicas
gozando da limitação de responsabilidade.
Atualmente a sociedade
limitada é regulada pelo Código Civil, sendo possível aos sócios escolher o
regime de regência supletiva entre as sociedades simples e anônimas.
Estabelece-se através do
contrato social uma relação entre sócio e sociedade, pois a partir do registro
daquele atribui-se a personalidade jurídica que importa na formação de um novo
sujeito de direito, que possui, entre outras características, a autonomia
patrimonial. Sendo assim , o contrato social tem peculiaridade em envolver
obrigações recíprocas entre sócios, obrigações entre sócios e a sociedade e obrigações
da sociedade para com terceiros.
Entretanto, a lei não
estabelece de forma sistemática em que consistem essas obrigações e direitos,
as quais devem ser extraídas do Código Civil. Inicialmente, os sócios não
possuem o dever de trabalho, em regra, pois sua obrigação é a de contribuir
para as atividades sociais com bens. O contrato social pode fixar obrigações
que são próprias dos sócios, daí surgindo o dever. Mesmo assim, se o contrato
social exigir o trabalho dos sócios não poderá fazê-lo a título de contribuição
para a formação do capital social, pois, na sociedade limitada, é expressamente
vedada a contribuição com serviços.
Sem prejuízo de outros
direitos e deveres os sócios ainda tem direito à participação dos lucros, à
liquidação social e à fiscalização regular da sociedade. Sem dúvida porém, o
maior interesse é o da limitação da responsabilidade.
De fato a sociedade limitada
é um tipo de pessoa jurídica que permite ao sócio limitar a sua
responsabilidade ao valor das suas quotas, existindo contudo, responsabilidade
solidária, pela integralização do capital social. Entre o conjunto de direitos
e deveres, destaca-se o dever de contribuírem com recursos de seu próprio
patrimônio para a formação do capital social.
Se os sócios subscrevem e
integralizam o capital social não sua totalidade, adquirem de imediato aquele
que parece ser o maior benefício desse tipo societário: a limitação da sua
responsabilidade ao valor das quotas que
subscreveram e integralizaram. Entretanto, é facultado aos sócios definirem o
momento em que se dará a integralização, mas se assim optarem ficarão obrigados
solidariamente por ela.
Considerações
finais
A atribuição do status de
sujeito de direito à pessoa jurídica
implicou a possibilidade de reconhecer a existência de uma realidade metajurídica que permite a
separação entre criador e criatura.
A partir da pessoa jurídica
como o centro referencial, cresce o movimento segundo o qual é preciso regular
com maior precisão as hipóteses em que as relações jurídicas poderão ser
imputadas aos sócios.
Adquire especial relevância
o princípio da boa-fé porque associado a dois aspectos importantes para as
sociedades limitadas, a lealdade e a confiança. Assim nas relações jurídicas
envolvendo a sociedade limitada, é comum os agentes econômicos imputarem os
riscos da contratação e a partir do limite da responsabilidade dos sócios, mas
também têm a expectativa de que na relação entabulada todos, sócios e
sociedade, agirão com lealdade e confiança para evitar infringência à
legislação ou abuso de direito, fatores
que levam à relativização daquela responsabilidade. Abre-se, assim, uma chave
para o fim econômico e social da sociedade limitada, o que permite uma abordagem
a partir da análise econômica do direito, com novos enfoques para justificar ou
compreender o porquê da relativização da limitação de responsabilidade dos
sócios.
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. O
contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: Aide, 1999.
_______________________
[1] Artigo destinado à
disciplina de Direito Empresarial I do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual de Roraima como
requisito para a obtenção da segunda nota.
[2] Acadêmica
do sétimo período do curso de Direito da Universidade Estadual de Roraima.
[3] DIAS,
destaca que é na “lei Aquilia que se esboça, afinal um princípio geral
regulador da reparação do dano. Embora se reconheça que não contivesse ainda
uma regra de conjunto nos moldes do direito moderno, era sem nehuma dúvida, o
germe da jurisprudência clássica com relação à injúria, e fonte direta da
moderna concepção da culpa aquiliana que tomou da lei Aquília seu nome
característico”. (Da responsabilidade civil. 8 ed. Rio de janeiro: Forense,
1987. p.21).