sábado, 10 de novembro de 2012

RESTRIÇÕES À AUTONOMIA PRIVADA NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA À LUZ DO ATUAL CÓDIGO CIVIL


Willianne Morais do Nascimento Sales[1]

RESUMO

Este trabalho trata sobre as hipóteses legais previstas na atual Codificação Civil no que tange as restrições à autonomia privada no contrato de compra e venda. A autonomia privada constitui a liberdade que a pessoa tem para regular os próprios interesses.  Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, de escolher com quem contratar e o que contratar. Será observado que determinadas pessoas apesar de possuírem capacidade civil para a prática dos atos da vida civil em geral (v.g. celebrar contratos), sofrem limitações, decorrentes da falta de legitimidade, em razão de determinadas circunstâncias ou da situação em que se encontram, por exemplo, por serem ascendentes, condôminos, tutores ou, ainda, cônjuges, e por esta razão ficam impedidas de comprar e vender.

PALAVRASCHAVE: Restrições. Autonomia privada. Legitimidade. Compra e venda.


ABSTRACT


This work talks about legal hypotheses provided in the current Civil Codification at the terms of restrictions into private autonomy in the buy and sell contract. The private autonomy is like the person’s liberty to regulate your own interests or business. That’s why the parts have a choice to celebrate or not these contracts, besides, select the person to contract and what object to contract. Will be observed that some people even having civil capacity to practice general acts of civil life (v.g. celebrate contracts), suffer from limitations, this result due to lack of legitimacy. Therefore certain situations or circumstances contribute for this, for example, when these people are ascending, tenants, tutors, or even so, spouse, for this reason they don’t be able to buy or sell.


KEYWORDS: Restriction. Private autonomy. Legitimacy. Buy and sell.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS


A ideia de um contrato com predominância da autonomia da vontade, em que as partes discutem livremente as suas condições em situação de igualdade, deve-se aos conceitos de contrato previstos nos códigos francês e alemão.
O princípio da autonomia da privada significa ampla liberdade de contratar[2]. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados. Como a vontade manifestada deve ser respeitada, a avença faz lei entre as partes, assegurando a qualquer delas o direito de exigir o seu cumprimento.
Com o advento do liberalismo, após a propagação das ideias iluministas, esse importante princípio ganhou ainda mais visibilidade. O princípio da autonomia privada, predominante no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, sofreu grande mitigação com os movimentos sociais, os quais, entretanto, não o extinguiram.
Atualmente, a própria codificação civil traz normas expressas que limitam a autonomia dos contratantes. A função social dos contratos e boa-fé objetiva são exemplos de princípios incluídos no ordenamento jurídico que mitigaram a autonomia privada. Não é diferente para a compra e venda, havendo limitações quanto ao conteúdo do negócio, sob pena de sua nulidade, anulabilidade ou ineficácia da avença.
Há determinadas circunstâncias ou situações em que algumas pessoas sofrem limitações para celebrar a compra e venda. Daí ser preciso verificar se há restrições à liberdade de celebrar a compra e venda. As restrições previstas no Código Civil à autonomia privada no contrato de compra venda são: compra e venda de ascendente (pais, avós, bisavós etc.) para descendente, compra e venda entre cônjuges, venda de bem imóvel celebrada por pessoa casada, compra e venda de bens sob administração e venda de bens em condomínio ou venda de coisa comum.


  1. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA

Não se pode falar em contrato sem autonomia da privada. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho afirmam que “mesmo em um sistema como o nosso, que toma por princípio maior a função social do contrato, este não poderá, obviamente, ser distendido a ponto de neutralizar a livre-iniciativa das partes” [3].
Esse princípio clássico, inspirado no Código Francês, segundo o qual as partes possuem ampla liberdade de celebrar ou não contratos, de escolher com quem contratar e o que contratar é posto em nova berlinda. Desapareceu o liberalismo que colocou a vontade como o centro de todas as avenças. No entanto, a liberdade de contratar nunca foi ilimitada, pois sempre esbarrou nos princípios de ordem pública[4].
Tal princípio teve o seu apogeu após a Revolução Francesa, com a predominância do individualismo e a pregação de liberdade em todos os campos, inclusive no contratual. Como a vontade manifestada deve ser respeitada, a avença faz lei entre as partes, assegurando a qualquer delas o direito de exigir o seu cumprimento.
A autonomia privada constitui a liberdade que a pessoa tem para regular os próprios interesses.  Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, de escolher com quem contratar e o que contratar. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados. Tal autonomia, porém, é limitada pelos princípios sociais e por normas de ordem pública.
Wald apud Stolze e Pamplona Filho, explica as formas como a autonomia pode se apresentar:

“a autonomia da vontade se apresenta sob duas formas distintas, na lição dos dogmatistas modernos, podendo revestir o aspecto de liberdade de contratar e de liberdade contratual. Liberdade de contratar é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a liberdade contratual é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua realização”[5].

Inicialmente, percebe-se no mundo negocial plena liberdade para a celebração dos pactos e avenças com determinadas pessoas, sendo o direito à contratação inerente à própria concepção da pessoa humana, um direito existencial da personalidade advindo do princípio da liberdade. Essa é a liberdade de contratar. Em um primeiro momento, a liberdade de contratar está relacionada com a escolha da pessoa ou das pessoas com quem o negócio será celebrado, sendo uma liberdade plena, em regra. Entretanto, em alguns, casos, nítidas são as limitações à carga volitiva, eis que não se pode, por exemplo, contratar com o Poder Público se não houver autorização para tanto. Como limitação da liberdade de contratar, pode ser citado o art. 497 do Código Civil, que veda a compra e venda de bens confiados à administração em algumas situações, como será estudado adiante.
Em outro plano, a autonomia da pessoa pode estar relacionada com o conteúdo do negócio jurídico, ponto em que residem limitações ainda maiores à liberdade da pessoa humana. Trata-se, portanto, da liberdade contratual.
Washington Monteiro de Barros ao tratar da mencionada diferença esclarece que:


“Essa liberdade de contratar pode ser vista sob dois aspectos. Pelo prisma da liberdade propriamente dita de contratar ou não, estabelecendo-se o conteúdo do contrato, ou pelo prisma da escolha da modalidade do contrato. A liberdade contratual permite que as partes se valham dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos típicos), ou criem uma modalidade de contrato de acordo com suas necessidades (contratos atípicos).”[6]


Dessa dupla liberdade da pessoa é que decorre a autonomia privada, que constitui a liberdade que a pessoa tem para regular os próprios interesses. Importante ressalvar que essa autonomia não é absoluta, encontrando limitações em normas de ordem pública e nos princípios sociais.
Autores como Fernando Noronha e Flávio Tartuce defendem a substituição da expressão autonomia da vontade pela autonomia privada.
“Foi precisamente em consequência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência a mais antiga autonomia da vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a autonomia privada é noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante”[7]. (Fernando Noronha apud Flávio Tartuce)

A razão que fundamenta a autonomia privada em detrimento da autonomia da vontade é o fato de que atualmente se entende que a autonomia não é da vontade, mas sim da pessoa, o que reforça a própria personalização do direito privado. “A autonomia da vontade vista no plano da bilateralidade do contrato, pode ser expressa pelo denominado consensualismo: o encontro das vontades livres e contrapostas faz surgir o consentimento, pedra fundamental do negócio jurídico contratual”[8].
O contrato hoje é constituído por uma soma de fatores, e não mais pela vontade pura dos contratantes, delineando-se o significado do princípio da autonomia privada, pois outros elementos de cunho particular irão influenciar o conteúdo do negócio jurídico patrimonial.
A própria imposição da contratação ou de algumas cláusulas contratuais pela lei ou pelo Estado, o que se denomina Dirigismo Contratual, aparece como uma situação em a vontade é deixada em segundo plano. Como exemplo, podemos citar o seguro obrigatório, contrato que deve obrigatoriamente ser celebrado por proprietários de veículos automotores.
A proliferação dos contratos de adesão fortalece tal entendimento, uma vez que a vontade de uma das partes é diminuída. Flávio Tartuce afirma que:

 “do ponto de vista prático e da realidade, essa é a principal razão pela qual se pode afirmar que a autonomia da vontade não é mais princípio contratual. Ora, a vontade tem agora um papel secundário, resumindo-se, muitas vezes, a um sim ou não, como resposta a uma proposta de contratação (take it or leave it, segundo afirmam os americanos, ou seja, é pegar ou largar)”[9].


É importante frisar que as normas restritivas da autonomia privada constituem exceção, não admitem analogia ou interpretação extensiva, justamente diante da tão mencionada valorização da liberdade. Em situações de dúvida entre a proteção da liberdade da pessoa humana e os interesses patrimoniais, deve prevalecer a primeira, ou seja, o direito existencial prevalece sobre o patrimonial.
A título de exemplo o art. 496, caput, do Código Civil prevê que é anulável a venda de ascendente para descendente, não havendo autorização dos demais descendentes e do cônjuge do alienante. Surge uma dúvida: o dispositivo também se aplica à hipoteca, direito real de garantia sobre coisa alheia, exigindo-se, para a hipoteca a favor do um filho, a autorização dos demais? A resposta é negativa, pois, caso contrário, estar-se-ia aplicando o citado comando legal, por analogia, a uma determinada situação não alcançada pela subsunção da norma jurídica.
Flávio Tartuce alerta que “eventualmente, uma norma restritiva da autonomia privada pode admitir a interpretação extensiva ou a analogia, visando proteger parte vulnerável da relação negocial, caso do trabalhador, do consumidor e do aderente”[10]. A própria Constitucional faz uma proteção especial aos vulneráveis, por exemplo, aos consumidores e aos trabalhadores (art. 7º).

  
  1. LIMITAÇÃO À AUTONOMIA PRIVADA NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA

A autonomia privada encontra limitações na ordem pública, como por exemplo, o próprio princípio da função social dos contratos. Não é diferente para a compra e venda, havendo limitações quanto ao conteúdo do negócio, sob pena de sua nulidade, anulabilidade ou ineficácia da avença.
O contrato de compra e venda possui três elementos essenciais: o consentimento das partes, a coisa e o preço. É necessário, portanto, para que o contrato de compra e venda seja celebrado, além da coisa e do preço, o consentimento dos contratantes sobre a coisa, preço e demais condições do negócio. Como o contrato de compra e venda gera a obrigação de transferir a propriedade do bem alienado, pressupondo o poder de disposição do vendedor, será necessário que ele tenha capacidade de alienar, bastando ao comprador a capacidade de obrigar-se.
Algumas pessoas sofrem limitações, decorrentes da falta de legitimidade, em razão de determinadas circunstâncias ou da situação em que se encontram, que não se confundem com incapacidade. Só não podem vender ou comprar de certas pessoas. Carlos Roberto Gonçalves afirma que “são pessoas maiores e dotadas de pleno discernimento, mas que, em face de sua posição na relação jurídica, isto é, por serem ascendentes, condôminos, tutores ou, ainda, cônjuges, ficam impedidas de comprar e vender até estarem devidamente legitimadas”[11]. Daí ser preciso verificar se há restrições à liberdade de compra e vender.
A partir desse momento, serão estudadas as restrições à autonomia privada no contrato de compra e venda, tratadas pelo Código Civil de 2002, a saber: compra e venda de ascendente para descendente (art. 496 do CC), compra e venda entre cônjuges (art. 499 do CC), venda de bem imóvel celebrada por pessoa casada, compra e venda de bens sob administração (art. 497 do CC) e venda de bens em condomínio ou venda de coisa comum (art. 504 do CC).


  1. Compra e Venda de ascendente a descendente

Dispunha o art. 1.132 do Código Civil de 1916 que “os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam”. Este dispositivo, em verdade, criava uma restrição à venda a descendentes, que não gozariam de legitimidade para figurar como adquirentes neste tipo de contrato. Estariam, pois, nesse contexto, impedidos de celebrar este negócio, ainda que fossem perfeitamente capazes, se os demais descendentes não houvessem expressado a sua aquiescência.
Em verdade, o que visou a nossa lei, neste particular, foi exatamente resguardar a legítima dos demais descendentes, que não participassem da referida venda.
Atualmente tal situação é tratado no Código Civil de 2002 no art. 496, que dispõe:

Art. 496. É anulável a venda de ascendente para descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.
Parágrafo Único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória.


Cuida-se de disposição legal de caráter visivelmente protetivo do núcleo familiar, cuidando dos ingredientes psicológicos e econômicos que podem defluir de uma venda celebrada entre pessoas de uma mesma família[12].
E uma dessas medidas de proteção à legítima é, precisamente, a necessidade de se colher a anuência dos demais herdeiros necessários preferenciais, para que se possa reputar válida a referida venda.
Os ascendentes têm o direito de, a qualquer tempo, alienar seus bens a quem quiserem, mas não poder vender ao descendente (filho, neto, bisneto etc.) sem que os demais descendentes e o cônjuge do alienante (salvo se for casado em regime de separação obrigatória de bens) expressamente consintam por meio de escritura pública ou no mesmo instrumento (público ou particular) do negócio principal ou, ainda, por meio de mandato com poder especial, porque essa venda de bens imóveis ou móveis poderia acobertar uma doação em prejuízo dos demais herdeiros necessários.
Portanto, a regra não alcança somente pais e filhos, mas também limita a compra e venda entre avós e netos, bisavós e bisnetos etc. Qualquer ascendente que pretenda vender a descendente, independentemente do grau de parentesco, está abrangido pelo sistema do Código Civil, impondo-se a anuência dos outros interessados[13]. No caso da venda ao neto, todos os filhos vivos, incluindo o pai ou a mãe do comprador, seus tios e os demais netos do vendedor devem anuir.
O art. 496 da atual codificação afasta o debate anterior que atormentava a jurisprudência a respeito de ser o caso de nulidade absoluta ou relativa. A questão está superada, pois o caso é de anulabilidade ou nulidade relativa. Saliente-se que as hipóteses de nulidade absoluta ou relativa são fixadas por opção legislativa, não podendo ser contrariadas.
É importante salientar que tal o art. 496 do Código de 2002 é uma norma restritiva de direitos, que não se aplica por analogia aos casos de união estável. Assim sendo, não há necessidade de autorização do companheiro para a compra e venda para seu descendente[14].
Desse modo, para vender um imóvel para um filho, o pai necessita de autorização dos demais filhos e de sua mulher, sob pena de anulação da venda. Pela dicção do parágrafo único do dispositivo, dispensa-se a autorização do cônjuge, se o regime for o da separação obrigatória de bens, aquele que é fixado pela lei, nos termos do art. 1641 do CC.
A proibição prevista no caput do art. 496 pode ser fundamentada pela possibilidade de um ascendente querer beneficiar um de seus descendentes, em prejuízo dos demais. Por esta razão, o ordenamento jurídico tende a estabelecer uma proteção aos descendentes e ao outro cônjuge, evitando que o ascendente venha a frustrar fraudulenta ou simuladamente a sua perspectiva patrimonial, como escopo de beneficiar outro filho. Como bem coloca Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald, “seria o caso do pai que, sabendo que eventual doação para o filho predileto implicaria, por lei, antecipação da herança que caberia a este no futuro, resolve vender a este descendente a um preço completamente irrisório”[15].
É necessário evitar qualquer dissimulação de doação inoficiosa em favor de um dos descendentes. Os descendentes, cuja anuência se exige, são os herdeiros necessários do alienante ao tempo da celebração do contrato. Por esta razão, se a venda se deu antes do reconhecimento da filiação, o reconhecido não poderá invalidá-la, por não ter consentimento naquele negócio.
A doação de pai a filho ou de um cônjuge a outro é permitida em direito e constitui um adiantamento da legítima ou do que lhes cabe por herança, conforme o art. 544, e o donatário será obrigado a trazer o bem doado, ou o seu equivalente, se tal bem foi alienado, à colação, a fim de igualar as legítimas dos herdeiros. Assim, pode acontecer de um pai que pretenda beneficiar um de seus filhos, mas se fizer uma doação, irá prejudica-lo na herança legítima, tente simular uma venda a esse filho, que não está sujeita à colação, caso em que invalidada deverá ser a referida venda simulada (art. 167).
Com o fim de evitar doações inoficiosas e vendas simuladas lesivas aos interesses dos demais herdeiros o Código Civil proíbe essa venda a não ser que os demais descendentes expressamente nela consintam, pois a lei proíbe anuência tácita.
Se os demais descendentes do vendedor não consentirem expressamente, essa venda será passível de anulação. No que se refere ao prazo para anular a referida compra e venda em virtude da falta de autorização dos demais descendentes e do cônjuge, deve-se entender que a Súmula 494 do STF está cancelada[16]. Isso porque a mencionada Súmula adota prazo prescricional de 20 anos, contados da celebração de ato, para anular a compra e venda estudada sem as autorizações dos demais descendentes e do cônjuge. Enquanto que a Codificação atual adota para o caso em questão o prazo decadencial o que é comum para as ações condenatórias. Razão pela qual, aplica-se o prazo decadencial de 2 anos, contados da celebração do negócio, previsto no art. 179 do Código Civil. 


  1. Compra e Venda entre cônjuges

Uma vez firmada a sociedade conjugal, os cônjuges assumem entre si direitos e deveres recíprocos, regendo-se os aspectos patrimoniais dessa união pelas normas constantes do regime de bens ou do pacto antenupcial.
Nada obsta que um dos cônjuges possa livremente manejar a sua autonomia privada e vender bens particulares ao seu cônjuge.
Justifica-se, pois, a autorização da venda de bens particulares entre cônjuges, na medida em que sobre estes o consorte não tem direitos meatórios[17]. Isto se explica no fato de que no correr da vida de casado, um dos cônjuges pode adquirir, com exclusividade, determinados bens, sobre os quais o outro não terá qualquer direito.
O art. 499 do CC confirma tal possibilidade ao afirmar que “é lícita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos da comunhão”. Assim, será livre a aquisição onerosa por qualquer dos cônjuges dos bens excluídos da comunhão. Se um bem que já fizer parte da comunhão for vendido, a venda é nula, por impossibilidade do objeto (art. 166, II, CC).
O dispositivo ora estudado não é totalmente restritivo por esta razão pode ser aplicado à união estável, sendo possível a compra e venda entre companheiros de bens excluídos da comunhão. Em regra, e a exemplo do que ocorre com o casamento, o regime de bens da união estável é o da comunhão parcial de bens, não havendo contrato de convivência prevendo o contrário (art. 1725, CC)[18].
Por outro lado, se o casal estiver sob o regime de comunhão universal de bens, não se cogitará a compra e venda, uma vez que o patrimônio do casal é inteiramente comum. Excepcionalmente será possível a compra e venda de algum dos bens que possa estar excluídos da comunhão universal. Por exemplo, o marido que comprar da esposa os bens que ela recebeu da herança paterna com cláusula de incomunicabilidade.
Enquanto isso há completa liberdade de aquisição de patrimônio pelos cônjuges no regime de separação de bens, por não haver qualquer bem comum.
Contudo, deve-se ter atenção para eventual fraude ou simulação praticada entre marido e mulher, em detrimento de terceiros. Nesse caso, caberá ao terceiro interessado atacar judicialmente o ato transmissivo, provando os elementos exigidos por lei para a fraude ou a simulação. Não havendo vícios, é perfeitamente possível a compra e venda entre cônjuges porque não se justificaria impedir a referida venda entre pessoas casadas somente pela potencialidade fraudulenta.


  1. Venda de imóvel celebrada por pessoa casada

Existem atos que uma pessoa casada só pode praticar com a expressa anuência do seu cônjuge. Esses atos estão expressos de forma taxativa no art. 1647 do Código Civil. E, dentre eles, consta a venda de bem imóvel. (art. 1647, I, CC).
Tal regra é mais uma forma que a atual Codificação encontrou para proteger o patrimônio do casal e próprio núcleo familiar, uma vez que o imóvel muitas vezes é o único bem pertencente a família e não pode ficar sob o arbítrio de um dos cônjuges, que pode aliená-lo em situações que possam vir prejudicar a família.
O inciso I do mencionado artigo alude quanto à impossibilidade de alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis. “Importante salientar que esta vedação incide, apenas, em relação à alienação (venda e doação) ou à oneração (hipoteca, penhor...) de bens imóveis, não alcançando os móveis, ainda que de valor considerável”[19]. O demonstra uma preocupação maior do legislador com os bens imóveis pertencentes aos cônjuges.
Exige-se a aquiescência do cônjuge para alienar ou onerar o imóvel ainda que o bem não integre a comunhão, pertencendo, com exclusividade, a um dos cônjuges. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald exemplificam tal situação:

“É o exemplo da pessoa casada em comunhão parcial que pretende alienar um imóvel adquirido antes das núpcias. Para tanto, precisará da outorga de seu consorte, apesar de o bem não ingressar na comunhão patrimonial do casal. Isto de justifica porque, mesmo quando o bem não se comunica, os seus frutos entram na comunhão (CC, art. 1.669).” (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: volume IV: Contratos, p. 608.)


O ideal é que tal anuência deve constar no próprio instrumento que celebrou a compra e venda, isto é, na escritura pública que é exigida para bens imóveis, a fim de facilitar o trânsito do negócio jurídico. Existe, porém, a possibilidade desta anuência seja obtida em instrumento autônomo.
Não se exige a aquiescência do cônjuge se o casamento estiver em submetido ao regime de separação total de bens, uma vez que não há qualquer ponto de intercessão entre os cônjuges, pois neste regime, tanto a administração quanto os frutos dos bens particulares também são particulares.
Quanto à necessidade de anuência do companheiro para a venda de bem imóvel na união estável há dois entendimentos. O primeiro alude que há necessidade de consentimento do companheiro no caso estudado, sob o argumento de que, embora o art. 1647 faça referência expressa aos cônjuges, seria exigível a outorga a todos os casos de incidência da comunhão de bens, o que alcançaria a união estável (art. 1725, CC). Por outro lado, em posição contrária, há quem negue a necessidade de consentimento para a prática de qualquer ato na união estável. Isso porque como não se exige registro público de uma união estável, não há como o terceiro estar protegido de eventuais prejuízos. a segurança jurídica ficaria comprometida.
A venda de bem imóvel sem o consentimento do cônjuge implica anulabilidade, conforme o disposto no art. 1649 do Código Civil: “a falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.”


  1. Compra e Venda de bens sob administração

O art. 497 do Código Civil nega legitimação a certas pessoas, encarregadas de zelar pelo interesse dos vendedores, para adquirir bens pertencentes a estes. A intenção é manter a isenção de ânimo naqueles que, por dever de ofício ou por profissão, têm de zelar por interesses alheios, como o tutor, o curador, o administrador, o empregado público, o juiz e outros, que foram impedidos de comprar bens de seus tutelados, curatelados etc.
Preceitua, com efeito, o mencionado dispositivo que, “sob pena de nulidade”, não podem ser comprados, ainda que em hasta pública:
a) pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à sua guarda ou administração. A lei receia que estas pessoas façam prevalecer sua posição especial para obter vantagens, em detrimento dos titulares, sobre os bens que guardam ou administram.  
b) Pelos servidores públicos, em geral, os bens ou direitos da pessoa jurídica (da União, dos Estados ou dos Municípios, por exemplo) a que servirem, ou que estejam sob sua administração direta ou indireta, visto que poderão influir na deliberação de vender ou na fixação do preço da venda. A lei visa, aqui, proteger a moralidade pública.
c) Pelos juízes, secretários de tribunais, arbitradores, peritos e outros serventuários ou auxiliares da justiça, os bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde servirem, ou a que se estender a sua autoridade. Neste caso, o motivo é mais uma vez a moralidade e a estabilidade da ordem pública. Mas excepciona o art. 498 da Codificação Reale, prevendo que, em tais hipóteses não haverá proibição nos casos de compra e cessão entre coerdeiros, em pagamento de dívida ou para garantia de bens já pertencentes a essas pessoas (juízes e serventuários).
d) Pelos leiloeiros e seus prepostos, os bens de cuja venda estejam encarregados. O motivo é também a moralidade, diante do múnus que reveste tais administradores temporários.
As restrições envolvem a própria liberdade de contratar, pois há vedação de celebração do negócio jurídico entre determinadas pessoas. As proibições constantes do dispositivo atingem ainda a cessão de crédito que tenha caráter oneroso, conforme dispõe o parágrafo único do art. 497.


  1. Compra e Venda de bens em condomínio ou venda de coisa comum

Por definição, o condomínio traduz a coexistência de vários proprietários que detêm direito real sobre a mesma coisa, havendo entre si a divisão ideal segundo suas respectivas frações[20]. No condomínio cada condômino é dono de uma cota-parte, chamada de fração ideal.
O art. 1314 da Codificação permite que cada condômino possa, individualmente, vender a sua parte indivisiva, independentemente do consentimento dos demais. Dessa forma, os outros consortes não podem impedir a venda da fração ideal a terceiros.
Entretanto, quando a coisa é materialmente indivisível, o art. 504 do CC, dispõe que:

“Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência. Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os coproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.”


Trata-se de norma referente apenas ao condomínio de coisa indivisível, condicionante da faculdade de alienação, por determinar ao condômino/ alienante a necessidade de conferir ao seu consorte direito de preferência em face da fração alienada, ou seja, o direito de prevalecer o seu interesse em adquirir o bem, se sua proposta estiver em iguais condições às dos demais interessados.
O condômino não pode alienar a sua parte indivisa a estranho, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino preterido pode exercer o seu direito de preferência pela ação de preempção, ajuizando- a no prazo decadencial de cento e oitenta dias contados da data em que teve ciência da alienação (RT, 432:229, 543:144) e na qual efetuará o depósito do preço pago, havendo para si a parte vendida ao terceiro, conforme preceitua o art. 504, CC. Se mais de um condômino se interessar pela aquisição, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta destas, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, todos que quiserem poderão adquirir a parte vendida, depositando o preço. Aplica-se a regra somente ao condomínio tradicional e não ao edilício. Assim, um condômino não precisa dar preferência aos demais proprietários. Mas se o apartamento pertencer também a outras pessoas, estas devem ser notificadas para exercer a preferência legal, pois instaurou-se, nesse caso, um condomínio tradicional dentro do horizontal. Se a coisa é divisível, nada impede que o condômino venda a sua parte a estranho, sem dar preferência aos seus consortes, pois estes, se não desejarem compartilhar o bem com aquele, poderão requerer a sua divisão.
Até a partilha, o direito dos coerdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, é indivisível e regula-se pelas normas relativas ao condomínio (CC, art. 1.791). Podem, portanto, exercer o direito de preferência em caso de cessão de direitos hereditários a estranhos. Proclama, com efeito, o art. 1.794 do estatuto civil que “o coerdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro coerdeiro a quiser, tanto por tanto”. A preferência será exercida mediante o depósito do preço, no prazo de cento e oitenta dias contados da transmissão. Sendo vários os coerdeiros a exercer a preferência, entre eles se distribuirá o quinhão cedido, na proporção das respectivas quotas hereditárias (art. 1.795 e parágrafo único).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício da sua própria vontade, as relações de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica.
De fato a autonomia privada constitui um dos princípios fundamentais do sistema de direito privado num reconhecimento da existência de um âmbito particular de atuação com eficiência normativa
O princípio da autonomia privada possui limites de atuação, sendo, as normas de ordem pública, os princípios sociais e os bons costumes. A ordem pública, como conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da sociedade e do Estado e as que, no direito privado, estabelecem as bases jurídicas fundamentais da ordem econômica.
O legislador estabeleceu algumas situações em que a autonomia privada no contrato de compra e venda sofre limitação. É possível notar que essas restrições previstas na atual Codificação foram positivadas com o intuito de defender terceiros ligados direta e indiretamente ao negócio jurídico (v. g. demais descendentes e o cônjuge na venda de ascendente a descendente) ou, ainda, como forma de evitar abusos, fraudes ou simulações no negócio realizado.


  1. REFERÊNCIAS

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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

VENOSA, Silvo Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Volume II. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005.



[1] Acadêmica do 6º semestre do curso de Direito da Universidade Estadual de Roraima.
[2] Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais.
[3] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Contratos: Teoria Geral, p. 69.
[4] Washington Monteiro de Barros. Curso de direito civil: Direito das obrigações, p. 405.
[5] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Contratos: Teoria Geral, p. 70.
[6] Washington Monteiro de Barros. Curso de direito civil: Direito das obrigações, p. 405
[7] Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil: Volume Único, p. 490.
[8] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Contratos: Teoria Geral, p. 70.
[9] Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil: Volume Único, p. 492.
[10] Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil: Volume Único, p. 494.
[11] Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. p. 233.
[12] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Curso de Direito Civil. p. 600.
[13] Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais, p. 210.
[14] Em igual sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Curso de Direito Civil. p. 603 e Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil: Volume Único, p. 577.
[15] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Curso de Direito Civil. p. 600.
[16] Neste sentido, Maria Helena Diniz Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. p. 183.
[17] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Curso de Direito Civil. p. 606.
[18] Nesse sentido Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirmam que no que tange aos companheiros, observamos que a mesma regra, por isonomia constitucional, se aplica, devendo-se ressaltar que, a teor do art. 1.725, o regime adotado é o da comunhão parcial de bens.
[19] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: volume IV: Contratos, p. 607.
[20] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Contratos em espécie, p. 64.