sábado, 10 de novembro de 2012

CRIME CONTINUADO



CRIME CONTINUADO






ADELSON PEREIRA DE SOUSA1

RESUMO
Este trabalho tem como proposta a abordagem do instituto do Crime Continuado, analisado sob os enfoques ou teorias da Ficção Jurídica e da Unidade Real. Obviamente que não temos a pretensão  de esgotar a discussão do tema a partir desta dualidade de concepções, o que se configura tarefa árdua, haja vista a complexidade da questão. Primeiramente passaremos em revista a origem histórica desta espécie de crime. Em seguida procederemos a sua análise a partir do Direito Penal brasileiro. Finalizando com algumas assertivas sobre a jurisprudência concernente ao objeto em estudo.



Palavras-chave: direito penal; ficção jurídica; equidade;






_________________________________
1 Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Roraima – UERR

1  INTRODUÇÃO

Remonta da Idade Média o surgimento do Crime Continuado. Criado com o objetivo de evitar conseqüências draconianas à aplicação das sanções por furto, o Crime Continuado, desde a sua gênese, é alvo de fortes críticas por parte daqueles que entendem sua aplicação como uma ficção jurídica, uma benevolência discrepante em se tratando de sua aplicabilidade em casos de grave lesão ou grave ameaça a bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, nos casos de crimes contra a vida.
Por outro lado, seus defensores sustentam a tese de tratar-se de medida necessária em nome da justiça e razoabilidade no caso concreto e afirmam ainda não se tratar de abrandar a punição a prática de vários delitos, mas sim de aplicação da equidade quando constatada a continuidade de delitos da mesma espécie em um lapso temporal que o justifique.
Ainda encontramos a teoria mista, corrente que define o crime continuado como uma figura criminosa especial e autônoma, não se confundindo com o crime único.
Importante ressaltar que embora expresso em nosso Código Penal, o crime continuado não se apresenta nem de longe como consenso. A despeito de ter o legislador lhe conferido o status de norma, há divergência quanto a sua aplicação no caso concreto, consoante podemos verificar nas Jurisprudências sobre o tema.

2  ORIGEM HISTÓRICA

O crime continuado tem sua origem pautada na política criminal. Foi um instituto criado com o objetivo de favorecer aqueles na durante a Idade Medieval praticavam o delito do furto por três vezes seguidas, o que culminava, segundo o código vigente, com pena de morte.
O crime continuado deve sua formulação aos glosadores (1100 a 1250) e pós-glosadores (1250 a 1450) e teve suas bases lançadas efetivamente no século XIV, com a finalidade de permitir que os autores do terceiro furto pudessem escapar da pena de morte. Os principais glosadores (...) foram não só os criadores do instituto crime continuado, como também lançaram as bases político-criminais do novo instituto”. (BITTENCOURT, 2004, p. 623).

3 DEFINIÇÃO

Nas palavras de Fernando Capez
“crime continuado é aquele no qual o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os quais, pelas semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução e outras, podem ser tidos uns como continuação dos outros” (2011, p. 549)

Senão, vejamos a redação do artigo 71, caput, do Código Penal – CP: “quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro...”.  Ora, clara está a definição do nobre professor Capez e em consonância com a letra da lei. Porquanto percebemos que o legislador cuidou aqui de aplicar a teoria do favor rei, ou seja, legislou em benefício do réu. Não obstante, se faz necessário enfatizar que a regra do crime continuado deve ser aplicada, sempre, em face do caso concreto e sob a inspiração das razões da política criminal que o inspiraram.
O ilustre professor Damásio de Jesus classifica em duas as teorias a respeito da conceituação do crime continuado, conforme abaixo:
a)     Objetivo-subjetiva: o crime continuado exige, para a sua identificação, além de determinados elementos de ordem objetiva, outro de índole subjetiva, que é expresso de modos diferentes; unidade de dolo, unidade de desígnio.
b)     Teoria puramente objetiva: dispensa a unidade de ideação e deduz o conceito de condutas continuadas dos elementos exteriores da homogeneidade (2003, p. 605).

Nosso código penal incorporou a teoria puramente objetiva, pois, conforme prescreve o artigo m71, em seu caput, para que se caracterize o crime continuado basta que os crimes sejam da mesma espécie e apresentem entre si semelhanças nos elementos subjetivos que os constituem, quais sejam: tempo, lugar, maneira de execução etc.

 4  A NATUREZA JURÍDICA DO CRIME CONTINUADO

O cerne da questão é definir se de fato se as várias condutas configuradoras do crime continuado constituem um único crime ou se, na verdade, caracterizam uma pluralidade de crimes. Algumas correntes procuram dirimir a questão. Vejamos:
a) Teoria da Unidade Real. A tese da unidade real, entende que os vários comportamentos lesivos do agente concorrem efetivamente para um único crime, uma vez que são elos de uma mesma corrente e traduzem uma unicidade de intenção, que se reflete numa unidade de lesão. Portanto, enxerga o crime continuado como sendo, em essência (isto é, na realidade), um único crime.
b) Teoria da Ficção Jurídica. Entende o delito continuado como sendo, na verdade, uma pluralidade de crimes (ou seja, concurso material), mas que, devido a razões de política criminal, levando-se em conta a especificidade e particularidades do caso concreto e alegada menor culpabilidade do sujeito, seria tratado, por ficção jurídica, enquanto crime único. Esta concepção também recebe o título de teoria da “unidade fictícia limitada”.
c) Teoria Mista. Prega que o delito continuado seria uma figura criminosa especial e autônoma, não se confundindo com o crime único. Essa posição também é conhecida por tese da “unidade mista” ou “unidade jurídica”.
Nosso ordenamento jurídico adotou a teoria da ficção jurídica, pois na realidade há uma pluralidade de delitos, mas o legislador, como em uma ficção, presume, somente para efeito de sanção, tratar-se de um único crime que tem continuidade nas demais ações. O Código Penal brasileiro, inclusive, não faz qualquer referência à unidade de desígnios enquanto requisito do crime continuado. Consoante se extrai da redação do art. 71 do CP, os elementos estruturantes da continuidade delitiva são apenas de ordem objetiva, inexistindo qualquer menção a elementos subjetivos.
Conforme muito bem frisado por Reale Jr., embora o Código pátrio tenha adotado a teoria objetiva pura, “os Tribunais, por vezes, com o intuito de limitar o benefício do crime continuado, passaram a criar exigências quanto às circunstâncias de lugar, tempo e maneira de execução e até mesmo unidade de desígnio”.

5  ELEMENTOS OBJETIVOS ESTRUTURANTES DO CRIME CONTINUADO

a) Pluralidade de Condutas. Há necessidade de “mais de uma ação ou omissão” para o reconhecimento do crime continuado. Sem pluralidade de condutas inexiste delito continuado. Frise-se que não se está falando apenas de multiplicidade de atos criminosos, mas de condutas criminosas (mesma exigência que se faz no concurso material). Assim, conduta delitiva singular (uma ação ou uma omissão) geradora de múltiplos resultados criminosos (mais de um crime) não induz continuidade delitiva, mas sim concurso formal.

b) Pluralidade de Crimes da Mesma Espécie. É justamente neste ponto que se situa uma das grandes discussões atinentes ao crime continuado. O que são crimes da mesma espécie? É sobre essa resposta que a doutrina diverge. Dois são os posicionamentos encontrados:
I) crimes da mesma espécie são delitos constantes do mesmo tipo legal incriminador, pouco importando se na forma simples, qualificada, privilegiada, tentada ou consumada.
II) contrariamente ao asseverado ao norte, alguns estudiosos sustentam que crimes da mesma espécie não são somente os delitos previstos no mesmo tipo incriminador, pois isto são “crimes idênticos”, e não da “mesma espécie”. Nesta linha, são crimes da mesma espécie os que atentam contra bens jurídicos semelhantes e mediante condutas similares, pouco importando se necessariamente na mesma estrutura típica.
Filiando-se a esta corrente, Paulo Queiroz admite, por exemplo, o reconhecimento de continuidade delitiva entre furto, roubo e extorsão (crimes contra o patrimônio), bem como entre estupro e atentado violento ao pudor (crimes contra a liberdade sexual), em razão da semelhança entre eles.
c) Nexo Temporal. É necessário que se identifique uma aproximação quanto às circunstâncias de tempo, de maneira que possa se afirmar que um delito foi continuação do outro. A existência de largo espaço temporal entre os crimes rompe com a idéia de continuidade delitiva.
Agora, a grande indagação é a seguinte: qual é o lapso temporal máximo dentro do qual ainda se admite a existência de crime continuado? Não existe fórmula matemática estipulada pelo Código, motivo pelo qual tudo dependerá das circunstâncias do caso. É inegável, por exemplo, que se “os dois crimes foram praticados no mesmo dia, com diferença de quinze minutos entre as condutas, tendo o segundo ocorrido no mesmo lugar em que o primeiro automóvel subtraído foi abandonado, além da execução ser idêntica, pois configurada em ambos a grave ameaça, consistente na utilização da arma de fogo, evidencia-se o preenchimento dos requisitos objetivos para a aplicação da continuidade delitiva”. Também admissível é o entendimento segundo o qual “se entre as séries delituosas houver diferença de meses, não haverá continuidade delitiva, mas sim reiteração delitiva, devendo ser aplicado a regra do concurso material. Enfim, pode-se afirmar que a jurisprudência estabeleceu como espaço de tempo máximo o período de 30 (trinta) dias entre os crimes; acima deste período já é um pouco complicada a admissão de continuidade delitiva, passando a se falar em concurso material.

d) Nexo Espacial. A continuidade delitiva exige similitude nas circunstâncias de espaço ou território, de forma que os crimes devem ser cometidos, se não no mesmo lugar, em locais próximos (ex.: bairros vizinhos ou cidades interligadas).

e) Nexo Modal. Imprescindível a identificação de um “modus operandi” característico em todos os crimes.
A presença de todas estas condições (cumulativamente) significa o preenchimento dos requisitos objetivos para o reconhecimento da continuidade delitiva.
Por último faz-se mister procedermos a diferenciação entre crime continuado e habitualidade criminosa, para que não reste dúvida e não pensem os menos aprofundados no tema tratar-se de um mesmo instituto. Em verdade
“A habitualidade é incompatível com a continuidade. A primeira recrudesce, a segunda ameniza o tratamento penal. Em outras palavras, a culpabilidade (no sentido de reprovabilidade) é mais intensa na habitualidade do que na continuidade. Em sendo assim, jurídico-penalmente, são situações distintas. Não podem, outrossim, conduzir ao mesmo tratamento. O crime continuado favorece o delinqüente. A habitualidade impõe reprovação maior, de que a pena é expressão, finalidade estabelecida segundo seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Na continuidade há sucessão circunstancial de crimes. Na habitualidade, sucessão planejada, indiciária do modus vivendi do agente”.  (CAPEZ. 2011, p. 554)

5  CONCLUSÃO

Em verdade o legislador, usando de política criminal, em clara manifestação de favor rei impõe em nosso ordenamento jurídico um malogrado artifício criado ainda na Idade Média, para beneficiar àqueles que cometiam crime de furto por três vezes consecutivas e que sucumbiriam a pena de morte.
É compreensível em uma sociedade formada por homens rudes, muitos dos quais vivendo ainda em estado de semi barbárie, a defesa de tais comportamentos avessos a ordem e a paz. Se analisarmos o contexto da Europa medieval, encontraremos motivos de sobra que justificam a normatização do crime continuado, como forma até de garantir a perpetuação da espécie humana, pois teria conseqüência nefasta mandar para a forca todos os adeptos da prática de furto e roubo das primeiras décadas do século XIII.
Entretanto, é inconcebível que esse instituto ainda encontre guarida em um ordenamento jurídico de Estado democrático de direito em pleno século XXI. Chega a ser um escárnio aos costumes, aos valores, a moral, aos princípios fundamentais da garantia da vida e da dignidade humana. O crime continuado previsto no Código Penal brasileiro cheira a impunidade, a má fé e ao desrespeito a proteção dos bens jurídicos tutelados.


6  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Cezar Roberto
       Tratado de direito penal : parte geral, volume 1 / Cezar /Roberto Bittencourt. – 9ª Ed. – São Paulo : Saraiva, 2004

CAPEZ, Fernando
         Curso de direito penal, volume 1, parte geral : (arts. 1 a 120) / Fernando Capez – 15 ed. – São Paulo : Saraiva, 2011.

JESUS, Damásio E. de, 1935 –
        Direito penal / Damásio E. de Jesus. – São Paulo : Saraiva, 2003: V. 1. Parte geral, 26 ed.

Nenhum comentário:

Postar um comentário