CRIME CONTINUADO
ADELSON PEREIRA DE SOUSA1
RESUMO
Este trabalho tem como
proposta a abordagem do instituto do Crime Continuado, analisado sob os
enfoques ou teorias da Ficção Jurídica e da Unidade Real. Obviamente que não
temos a pretensão de esgotar a discussão
do tema a partir desta dualidade de concepções, o que se configura tarefa
árdua, haja vista a complexidade da questão. Primeiramente passaremos em
revista a origem histórica desta espécie de crime. Em seguida procederemos a
sua análise a partir do Direito Penal brasileiro. Finalizando com algumas
assertivas sobre a jurisprudência concernente ao objeto em estudo.
Palavras-chave: direito
penal; ficção jurídica; equidade;
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1 Acadêmico de Direito da
Universidade Estadual de Roraima – UERR
1 INTRODUÇÃO
Remonta
da Idade Média o surgimento do Crime Continuado. Criado com o objetivo de
evitar conseqüências draconianas à aplicação das sanções por furto, o Crime
Continuado, desde a sua gênese, é alvo de fortes críticas por parte daqueles
que entendem sua aplicação como uma ficção jurídica, uma benevolência
discrepante em se tratando de sua aplicabilidade em casos de grave lesão ou
grave ameaça a bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, nos casos de
crimes contra a vida.
Por
outro lado, seus defensores sustentam a tese de tratar-se de medida necessária em
nome da justiça e razoabilidade no caso concreto e afirmam ainda não se tratar de abrandar a
punição a prática de vários delitos, mas sim de aplicação da equidade quando
constatada a continuidade de delitos da mesma espécie em um lapso temporal que
o justifique.
Ainda
encontramos a teoria mista, corrente que define o crime continuado como uma figura
criminosa especial e autônoma, não se confundindo com o crime único.
Importante ressaltar que embora expresso em nosso Código Penal, o crime
continuado não se apresenta nem de longe como consenso. A despeito de ter o
legislador lhe conferido o status de norma, há divergência quanto a sua
aplicação no caso concreto, consoante podemos verificar nas Jurisprudências
sobre o tema.
2 ORIGEM HISTÓRICA
O crime continuado tem sua origem pautada na política criminal. Foi um
instituto criado com o objetivo de favorecer aqueles na durante a Idade
Medieval praticavam o delito do furto por três vezes seguidas, o que culminava,
segundo o código vigente, com pena de morte.
O crime
continuado deve sua formulação aos glosadores (1100 a 1250) e pós-glosadores
(1250 a 1450) e teve suas bases lançadas efetivamente no século XIV, com a
finalidade de permitir que os autores do terceiro furto pudessem escapar da
pena de morte. Os principais glosadores (...) foram não só os criadores do
instituto crime continuado, como também lançaram as bases político-criminais do
novo instituto”. (BITTENCOURT, 2004, p. 623).
3 DEFINIÇÃO
Nas palavras de Fernando Capez
“crime continuado é aquele no qual o agente, mediante
mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os
quais, pelas semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução e outras,
podem ser tidos uns como continuação dos outros” (2011, p. 549)
Senão, vejamos a redação do artigo 71, caput, do Código Penal –
CP: “quando o agente, mediante mais de
uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas
condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os
subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro...”. Ora, clara está a definição do nobre
professor Capez e em consonância com a letra da lei. Porquanto percebemos que o
legislador cuidou aqui de aplicar a teoria do favor rei, ou seja, legislou em
benefício do réu. Não obstante, se faz necessário enfatizar que a regra do
crime continuado deve ser aplicada, sempre, em face do caso concreto e sob a
inspiração das razões da política criminal que o inspiraram.
O ilustre professor Damásio de Jesus classifica em duas as teorias a
respeito da conceituação do crime continuado, conforme abaixo:
a)
Objetivo-subjetiva: o crime continuado exige, para a
sua identificação, além de determinados elementos de ordem objetiva, outro de
índole subjetiva, que é expresso de modos diferentes; unidade de dolo, unidade
de desígnio.
b)
Teoria puramente objetiva: dispensa a unidade de
ideação e deduz o conceito de condutas continuadas dos elementos exteriores da
homogeneidade (2003, p. 605).
Nosso código penal incorporou a teoria puramente objetiva, pois,
conforme prescreve o artigo m71, em seu caput, para que se caracterize o crime
continuado basta que os crimes sejam da mesma espécie e apresentem entre si
semelhanças nos elementos subjetivos que os constituem, quais sejam: tempo,
lugar, maneira de execução etc.
4 A NATUREZA JURÍDICA DO CRIME CONTINUADO
O cerne da questão é definir se de fato se as várias condutas
configuradoras do crime continuado constituem um único crime ou se, na verdade,
caracterizam uma pluralidade de crimes. Algumas correntes procuram dirimir a
questão. Vejamos:
a) Teoria da
Unidade Real. A tese da unidade real, entende que os vários
comportamentos lesivos do agente concorrem efetivamente para um único crime,
uma vez que são elos de uma mesma corrente e traduzem uma unicidade de
intenção, que se reflete numa unidade de lesão. Portanto, enxerga o crime
continuado como sendo, em essência (isto é, na realidade), um único crime.
b) Teoria da
Ficção Jurídica. Entende o delito continuado como sendo, na verdade,
uma pluralidade de crimes (ou seja, concurso material), mas que, devido a
razões de política criminal, levando-se em conta a especificidade e
particularidades do caso concreto e alegada menor culpabilidade do sujeito,
seria tratado, por ficção jurídica, enquanto crime único. Esta concepção também
recebe o título de teoria da “unidade fictícia limitada”.
c) Teoria
Mista. Prega que o delito continuado seria uma figura criminosa especial e
autônoma, não se confundindo com o crime único. Essa posição também é conhecida
por tese da “unidade mista” ou “unidade jurídica”.
Nosso ordenamento jurídico adotou a teoria da ficção jurídica, pois na
realidade há uma pluralidade de delitos, mas o legislador, como em uma ficção,
presume, somente para efeito de sanção, tratar-se de um único crime que tem
continuidade nas demais ações. O Código Penal brasileiro, inclusive, não faz
qualquer referência à unidade de desígnios enquanto requisito do crime
continuado. Consoante se extrai da redação do art. 71 do CP, os elementos
estruturantes da continuidade delitiva são apenas de ordem objetiva,
inexistindo qualquer menção a elementos subjetivos.
Conforme muito bem frisado por Reale Jr., embora o Código pátrio tenha
adotado a teoria objetiva pura, “os
Tribunais, por vezes, com o intuito de limitar o benefício do crime continuado,
passaram a criar exigências quanto às circunstâncias de lugar, tempo e maneira
de execução e até mesmo unidade de
desígnio”.
5 ELEMENTOS OBJETIVOS ESTRUTURANTES DO CRIME CONTINUADO
a) Pluralidade de Condutas. Há necessidade de “mais de uma ação ou omissão” para
o reconhecimento do crime continuado. Sem pluralidade de condutas inexiste
delito continuado. Frise-se que não se está falando apenas de multiplicidade de
atos criminosos, mas de condutas criminosas (mesma exigência que se faz no
concurso material). Assim, conduta delitiva singular (uma ação ou uma omissão)
geradora de múltiplos resultados criminosos (mais de um crime) não induz
continuidade delitiva, mas sim concurso formal.
b) Pluralidade de Crimes da Mesma Espécie. É justamente neste ponto que se situa uma das grandes
discussões atinentes ao crime continuado. O que são crimes da mesma espécie? É
sobre essa resposta que a doutrina diverge. Dois são os posicionamentos
encontrados:
I) crimes da
mesma espécie são delitos constantes do mesmo tipo legal incriminador, pouco
importando se na forma simples, qualificada, privilegiada, tentada ou
consumada.
II)
contrariamente ao asseverado ao norte,
alguns estudiosos sustentam que crimes da mesma espécie não são somente os
delitos previstos no mesmo tipo incriminador, pois isto são “crimes idênticos”,
e não da “mesma espécie”. Nesta linha, são crimes da mesma espécie os que
atentam contra bens jurídicos semelhantes e mediante condutas similares, pouco
importando se necessariamente na mesma estrutura típica.
Filiando-se
a esta corrente, Paulo Queiroz admite, por exemplo, o reconhecimento de
continuidade delitiva entre furto, roubo e extorsão (crimes contra o
patrimônio), bem como entre estupro e atentado violento ao pudor (crimes contra
a liberdade sexual), em razão da semelhança entre eles.
c) Nexo Temporal. É
necessário que se identifique uma aproximação quanto às circunstâncias de
tempo, de maneira que possa se afirmar que um delito foi continuação do outro.
A existência de largo espaço temporal entre os crimes rompe com a idéia de
continuidade delitiva.
Agora, a grande indagação é a seguinte: qual é o lapso temporal máximo
dentro do qual ainda se admite a existência de crime continuado? Não existe
fórmula matemática estipulada pelo Código, motivo pelo qual tudo dependerá das
circunstâncias do caso. É inegável, por exemplo, que se “os dois crimes foram
praticados no mesmo dia, com diferença de quinze minutos entre as condutas,
tendo o segundo ocorrido no mesmo lugar em que o primeiro automóvel subtraído
foi abandonado, além da execução ser idêntica, pois configurada em ambos a
grave ameaça, consistente na utilização da arma de fogo, evidencia-se o
preenchimento dos requisitos objetivos para a aplicação da continuidade
delitiva”. Também admissível é o entendimento segundo o qual “se entre as
séries delituosas houver diferença de meses, não haverá continuidade delitiva,
mas sim reiteração delitiva, devendo ser aplicado a regra do concurso material.
Enfim, pode-se afirmar que a jurisprudência estabeleceu como espaço de tempo
máximo o período de 30 (trinta) dias entre os crimes; acima deste período já é
um pouco complicada a admissão de continuidade delitiva, passando a se falar em
concurso material.
d) Nexo Espacial. A
continuidade delitiva exige similitude nas circunstâncias de espaço ou
território, de forma que os crimes devem ser cometidos, se não no mesmo lugar,
em locais próximos (ex.: bairros vizinhos ou cidades interligadas).
e) Nexo Modal. Imprescindível a identificação de um “modus operandi” característico em todos os crimes.
A presença de todas estas condições (cumulativamente) significa o
preenchimento dos requisitos objetivos para o reconhecimento da continuidade
delitiva.
Por último faz-se mister procedermos a diferenciação entre crime
continuado e habitualidade criminosa, para que não reste dúvida e não pensem os
menos aprofundados no tema tratar-se de um mesmo instituto. Em verdade
“A habitualidade é incompatível com a continuidade. A
primeira recrudesce, a segunda ameniza o tratamento penal. Em outras palavras,
a culpabilidade (no sentido de reprovabilidade) é mais intensa na habitualidade
do que na continuidade. Em sendo assim, jurídico-penalmente, são situações
distintas. Não podem, outrossim, conduzir ao mesmo tratamento. O crime
continuado favorece o delinqüente. A habitualidade impõe reprovação maior, de
que a pena é expressão, finalidade estabelecida segundo seja necessária e
suficiente para reprovação e prevenção do crime. Na continuidade há sucessão
circunstancial de crimes. Na habitualidade, sucessão planejada, indiciária do modus vivendi do agente”. (CAPEZ. 2011, p. 554)
5 CONCLUSÃO
Em verdade o legislador, usando de política criminal, em clara
manifestação de favor rei impõe em
nosso ordenamento jurídico um malogrado artifício criado ainda na Idade Média,
para beneficiar àqueles que cometiam crime de furto por três vezes consecutivas
e que sucumbiriam a pena de morte.
É compreensível em uma sociedade formada por homens rudes, muitos dos
quais vivendo ainda em estado de semi barbárie, a defesa de tais comportamentos
avessos a ordem e a paz. Se analisarmos o contexto da Europa medieval,
encontraremos motivos de sobra que justificam a normatização do crime
continuado, como forma até de garantir a perpetuação da espécie humana, pois
teria conseqüência nefasta mandar para a forca todos os adeptos da prática de
furto e roubo das primeiras décadas do século XIII.
Entretanto, é inconcebível que esse instituto ainda encontre guarida em
um ordenamento jurídico de Estado democrático de direito em pleno século XXI.
Chega a ser um escárnio aos costumes, aos valores, a moral, aos princípios
fundamentais da garantia da vida e da dignidade humana. O crime continuado
previsto no Código Penal brasileiro cheira a impunidade, a má fé e ao
desrespeito a proteção dos bens jurídicos tutelados.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT,
Cezar Roberto
Tratado de direito penal : parte geral,
volume 1 / Cezar /Roberto Bittencourt. – 9ª Ed. – São Paulo : Saraiva, 2004
CAPEZ,
Fernando
Curso de direito penal, volume 1,
parte geral : (arts. 1 a 120) / Fernando Capez – 15 ed. – São Paulo : Saraiva,
2011.
JESUS,
Damásio E. de, 1935 –
Direito penal / Damásio E. de Jesus. –
São Paulo : Saraiva, 2003: V. 1. Parte geral, 26 ed.
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