quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS


MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS[1]


MARCELLY GOMES DIAS DE LIMA BARRETO
PAMELLA THAYANNE DE FREITAS
PAMELLA SUELLEN QUEIROZ[2]


O presente trabalho, sem pretensão de esgotar o tema, objetiva analisar o fenômeno da mutação constitucional em seus aspectos essenciais.
Sabe-se que a Constituição é passível de mudanças. A mutação constitucional sendo ela caracterizada pela dinamicidade, uma vez que, em prol dos direitos fundamentais e dos princípios democráticos é imprescindível recorrer a processos informais de mudança da Constituição que, sem alterar a sua literalidade, conferem ao respectivo texto novos significados, sentidos e alcance, com vista à realização efetiva desses valores.
Portanto, a mutação constitucional se evidencia em adequar o conteúdo de uma norma à realidade social, de modo que apenas venha a interpretá-la, sem que modifique seu conteúdo ou texto.
A mutação constitucional na Constituição advém da necessidade de acompanhar a evolução societária, para que de tal maneira, essas mudanças sociais readéquem ao texto normativo.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz (1997) em comentário ao esboço de Oliver Wendell Holmes alegou que a dedução não é o único componente que provoca o desenvolvimento do direito, “mas sim a experiência, ou seja, as necessidades de cada época, as teorias morais e políticas predominantes, as intuições que inspiraram a ação política".
Igualmente, é o que explica Francisco:

O Direito também é fonte de transformação social, representando o comando dirigente do processo social. Desse modo, a Sociedade e o Direito se apresentam numa relação de causa e efeito, ora a Sociedade determina o Direito e suas transformações, ora o Direito definindo diretrizes da própria Sociedade, a partir de programas e planos.

Verifica-se que existe uma ramificação clara entre Constituição e sociedade, visto que ambos são autônomos, e originariamente caminham em tempos diferentes, entretanto sempre se integralizando mutuamente.
Por vezes, a mutação constitucional segundo Uadi Lammêgo Bulos, citado por Pedro Lenza (2007, p. 110), considera que:

Mutação constitucional é o processo informal de mudança da constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até em então não ressaltados à letra da constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção, bem como dos usos e dos costumes constitucionais.

Ademais, merece destaque, o conceito levantado por Anna Cândida da Cunha Ferraz (1986, p.10): “assim, em síntese, a mutação constitucional altera o sentido o sentido, o significado e alcance do texto constitucional sem violar-lhe a letra e o espírito.”
[...] Trata-se, pois, de mudança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que, indireta ou implicitamente, é acolhida pela Lei Maior [...]
Canotilho descreve esse fenômeno como sendo "a revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na Constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto".
Destarte, a mutação constitucional pode ser definida como sendo o fenômeno por meio do qual são inseridas interpretações constitucionais e/ou integração consuetudinária, buscando alterar somente o seu sentido, significado ou alcance de determinadas normas constitucionais, de modo que, promovam a complementação, esclarecimento etc., das normas constitucionais escritas, todavia, não transgridem nem a sua literalidade expressa e muito menos sua substância incorpórea.
Dessa forma, observa-se que as mutações só terão validade quando não contrariar a Constituição e as garantias ali certificadas de forma rígida, sob pena de incidir em mutações inconstitucionais.
Essas mudanças, contudo, não acontece somente nos processos formais de mudanças constitucionais (revisão e emenda), antemão, estabelecidos pelo próprio texto constitucional, os quais requerem procedimentos solenes e dificultosos.
Sobreleva-se, nas mutações constitucionais, o caráter dinâmico da ordem jurídica constitucional, que proporciona a modificação da realidade normativa da constituição, sem ter que recorrer à revisão ou a emenda do correspondente texto.
Logo, essa dinamicidade encontra-se adstrito aos processos de modificações informais, ocorrendo de modo difuso e inorganizado, surgindo pela necessidade de adaptação dos preceitos constitucionais à realidade concreta, não estando submetido a quaisquer formalidades legais previamente estabelecidas.

CLASSIFICAÇÃO DAS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS

No que concerne a classificação, apesar das divergências entre autores, é possível encontrar alguns pontos semelhantes. Pode-se dizer que há mutação constitucional por interpretação e mutação constitucional pela prática constitucional.
A mutação por interpretação é a espécie mais clássica adotada pela doutrina e se dá através da adaptação do texto constitucional à nova realidade social-política. Esse tipo de mutação não altera o texto da lei nem seu conteúdo, mas modifica seu sentido, sua interpretação. Isso ocorre por causa da evolução social e a necessidade de o Direito Constitucional acompanhar tal desenvolvimento social. Apesar da mudança de acepção que a lei passará a ter, o novo significado não deve de maneira alguma desrespeitar o texto da lei.
Encaixam-se na mutação pela prática constitucional os casos de omissão legislativa e falta de previsão legal. Esse tipo de mutação pode ser dividido em mutação constitucional pela prática política, mutação constitucional por desuso, mutação constitucional para preenchimento de lacunas, mutação constitucional pela legislação ordinária e mutação constitucional por interpretação judiciária.
Mutação pela prática política é comumente utilizada quando ocorrem alterações políticas. Essa espécie tornou-se frequente no período pós-guerra, no momento em que o Direito começou a regular os fatos sociais e os de caráter político. As convenções constitucionais podem ser apresentadas como pertencentes às mutações constitucionais pela prática política justamente por tais convenções serem encontros políticos com o propósito de escrever uma nova Constituição ou revisar uma já existente.
Há também as mutações constitucionais por desuso e a existência destas é bastante compreensível, pois ocorrem quando há a falta de uso de uma norma constitucional. Tal desuso é derivado da interpretação da sociedade e a falta de aplicabilidade da norma em questão. Corrêa (2011) pondera que: “portanto, a falta de uso da norma constitucional faz com que seu significado seja alterado, pois esse desuso denota-se praticamente um veto à hipótese antes prevista.
Nota-se que a mutação constitucional por desuso é decorrente de uma interpretação da sociedade e não estatal, ou seja, é a prática social que gerará a lacuna constitucional ou até mesmo preenchê-la.
Como exemplo de mutação constitucional por desuso, pode-se citar o caso estadunidense sobre reeleição de presidentes. Inicialmente a Constituição americana não previa nada acerca do assunto, porém houve um grande impacto quando o presidente Roosevelt se candidatou à sua reeleição pela segunda vez, pois havia um consenso de que a reeleição só poderia ser disputada uma única vez. Sendo assim, houve uma mudança na Constituição e limitou-se a reeleição para apenas uma única vez.
Continuando com as classificações, há a mutação constitucional para preenchimento de lacunas quando sucede uma situação que não está prevista na Carta Constitucional, e, desta forma, a situação será condicionada à sociedade, ou por meio das regras gerais do direito, princípios constitucionais ou até mesmo pelo direito costumeiro. Normalmente as lacunas existentes são preenchidas pelos costumes em geral. Assim, ocorrerá uma mutação constitucional que irá se adaptar a nova realidade.
A mutação pela legislação ordinária é uma das poucas hipóteses de mutação constitucional por processo legislativo formal, pois é uma norma infraconstitucional que irá provocar a mutação, passando por uma reforma legislativa e pelos processos legais e formais do Poder Legislativo. Corrêa diz que “a cada modificação legislativa infraconstitucional, desde que esta altere o significado da norma matriz estabelecida na Constituição, incorrerá numa mutação constitucional”. Essa forma de mutação recebe críticas por conta do risco que procede, a substituição dos processos formais de reformas da Constituição pela mutação constitucional por legislação ordinária.
Também é possível citar a mutação constitucional por interpretação judiciária, esta sendo uma hipótese apresentada por Milton Campos e que propõe ser aplicada por meio de interpretação ou por meio da aplicação do Direito. Tanto no primeiro quanto no segundo caso o Poder Judiciário constrói um novo direito constitucional.
No Brasil pode-se citar como exemplo de construção judicial a famosa doutrina brasileira do habeas corpus, que estendeu o acolhimento dessa ação judicial para toda garantia individual do cidadão anterior à criação do mandato de segurança.

LIMITES DAS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Já apresentadas as classificações comuns das mutações constitucionais, também é importante ressaltar os limites das mesmas. José Afonso da Silva e Anna Cândida da Cunha Ferraz, adeptos do pensamento de Konrad Hesse, afirmam que as mutações estão limitadas ao texto da própria Constituição, ou seja, apesar das alterações que a norma sofreu no processo da mutação, é imprescindível que a mesma possa ser sustentada pela Constituição. O sistema constitucional também é um limite à mutação constitucional, pois esta última deve ser sempre parcial e não pode atingir toda a Constituição, caso contrário seria necessário uma reforma constitucional.
Podemos dividir os limites em subjetivos e objetivos. Os limites subjetivos seriam os de não desrespeitar a norma constitucional e a consciência jurídica geral. Já os limites objetivos são os que dizem que a mutação não pode contrariar o texto da Constituição, além de que as mutações devem ser razoáveis e fundamentadas.

AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Após a Constituição sofrer mutação constitucional, seria possível a atuação do controle de constitucionalidade?
A mutação constitucional é um processo informal, que não se submete ao rígido mecanismo formal de mudança da Constituição, pois é a modificação na realidade social que naturalmente causa a transformação na Constituição, provocando até mesmo mudança no significado da norma sem alterar seu texto original. Esse processo de alteração de conteúdo da norma de uma Constituição não passa pelo processo legislativo, pois ocorre ao longo do tempo, sendo apenas percebido após sua consumação.
Fica evidente que a mutação constitucional não é uma afronta direta à Constituição, nem mesmo uma infração objetiva a seu texto, mas apenas uma adequação desse texto a uma nova realidade da sociedade.
O controle de constitucionalidade tem uma finalidade semelhante, pois busca manter a supremacia da Constituição.
Nesse sentido é o entendimento de Alexandre de Moraes:

“A idéia de constitucionalidade está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também a de rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais”.

Em que pese ambos os institutos terem finalidades semelhantes, a mutação constitucional não se sujeita ao controle de constitucionalidade.
Como visto, a própria Constituição é o limite para o controle de constitucionalidade. Se a realidade social foi integrada a Constituição por meio de mutação constitucional, esta mudança passa a fazer parte da própria Constituição, não podendo a atuação do Supremo Tribunal Federal dispor contra essa alteração ocorrida na Carta Magna.
Cabe ressaltar que a análise política tanto do controle constitucional quanto da mutação são idênticas. Portanto, na ocorrência de desigualdades entre o controle de constitucionalidade e a mutação constitucional, o processo de controle de constitucionalidade geraria uma nova mutação constitucional, pois resultaria na mudança política do fato social em análise, seja para alterá-lo para sua significação anterior, seja para promover a criação de uma terceira situação social.
Portanto, é desnecessário falar em controle de constitucionalidade de mutação constitucional, visto que a norma que se procura proteger já foi alterada no processo de mutação constitucional, bem como já está integrada na Constituição.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal é o encarregado da decisão final do controle constitucional, dizendo se houve ou não mutação constitucional.
Assim, alterando-se o significado de uma norma constitucional estar-se-á diante de uma quebra constitucional ou de uma nova mutação constitucional. Por essa razão, não há falar em controle de constitucionalidade de mutações constitucionais.

CONCLUSÃO

A modificabilidade é atributo que não pode ser negado à Constituição, que tomada como um sistema aberto de regras e princípios deve manter-se viva e atenta à evolução da realidade que pretende normatizar. Para tanto, a efetividade de suas normas deve ser buscada através de sua correlação com a realidade social, pelo que impõe-se a criação ou o reconhecimento de mecanismos a preservar           a abertura do sistema , possibilitando, através das alterações, a permanência da Constituição como sistema normativo compatível com a realidade.
As mudanças informais do Texto Constitucional acontecem de forma sutil e permanente. É um fenômeno inerente à natureza humana e, como tal, sempre presente. Os costumes mudam, os valores mudam. O Universo está em constante mutação. Com as normas jurídicas não poderia ser diferente, pois o Direito é um fato social que se desenvolve através do tempo.


BIBLIOGRAFIA:

CAMPOS, Milton. Constituição e realidade. Revista Forense, v. 187, ano 57, 1960.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes.  Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1998, 1506 p.

CORRÊA, Daniel Marinho. Parâmetros para a mutação constitucional. Disponível em:

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 9 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1997.

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da ConstituiçãoMutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986.

FRANCISCO, Jorge. Emendas Constitucionais e Limites FlexíveisRio de Janeiro: Forense. 2003

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Ed. 14º. São Paulo: Saraiva, 2010.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: Atlas. 2006.

SILVA, José Afonso da. Mutações Constitucionais. In Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a constituição). São Paulo: Malheiros. 2007


[1] Trabalho apresentado para obtenção da terceira nota da Disciplina Teoria da Constituição.
[2] Acadêmicas do Curso de Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Roraima.

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