A PRINCIPIOLOGIA
CONTRATUAL COM O ADVENTO DO NOVO CÓDIGO CIVIL E A VALORIZAÇÃO DA SOCIALIDADE NA
PERSPECTIVA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Daniela Adriane Severo
RESUMO
O
presente estudo do tema proposto permite examinar questões relativas ao Código
de Defesa do Consumidor e sua influência no direito contratual, bem como a
aplicação de suas normas e a viabilidade de sujeitar o contrato de consumo aos
princípios gerais da teoria contratual. Nesse sentido, a princípiologia
contratual consumerista também será tratada nesse trabalho, não só por ter
contribuído para a evolução contratual, mas, principalmente, por sua inteira
relação com o hipossuficiente, demonstrando que o contrato é o instrumento
capaz de equilibrar as relações estabelecidas, promovendo a integração entre as
partes. Pretende desta forma, confrontar a aplicação dos princípios contratuais
e as transformações advindas com a nova teoria contratual e a valorização da
socialidade na perspectiva do Código de Defesa do Consumidor, analisando o que
a nova princípiologia trouxe de útil para as relações contratuais e, mais do
que isso, para a sociedade em geral.
Palavras-chave:
contrato, consumo, princípios, hipossuficiente, integração, socialidade.
ABSTRACT
This study allows the
examination of the proposed theme issues concerning the Code of Consumer Rights
and its influence on contract law and the application of its standards, or even
the viability of the consumer contract subject to the general principles of
contract theory. In this sense, the principles, consumerist contract will also
be treated in this work, not only for contributing to the development contract,
but mainly for their entire relationship with a disadvantage, showing that the
contract is the instrument capable of balancing the relationships established,
promoting integration between the parties. Intends thereby confronting the
application of contractual principles and the changes caused by the new theory
of contract and the value of sociality in the context of the Code of Consumer
Protection, analyzing what the new principles, brought useful for contractual
relations, and more than this, for society in general.
Keywords: contract,
consumption, principles, a disadvantage integration sociality.
1
Introdução
Com o avento do Código Civil
de 2002, os princípios fundamentais do contrato repercutiram muito nos
contratos de consumo, pois ambos os diplomas legais pretenderam ser fiéis
instrumentos de aplicação dos princípios que se consolidaram no Estado social.
Em nenhuma matéria o novo
Código Civil altera ou extingue as normas próprias de direito do consumidor,
pois estas são especiais em face daquele, entendido como norma geral.
São notáveis a aproximação
entre os dois códigos quanto à princípiologia contratual, pois ambos pretenderem
realizar o ideário do Estado social, distanciando-se do individualismo
acentuado que marcou o Código Civil de 1916, fruto do contexto histórico do
liberalismo do século XIX e início do século XX.
Isso contribui para o
esclarecimento da força crescente dos princípios contratuais típicos do Estado
social: Princípio da função social do contrato; Princípio da boa-fé objetiva; e
Princípio da equivalência material do contrato.
Tais princípios sociais do
contrato, entretanto não eliminam os princípios liberais (que predominaram no
Estado liberal: o princípio da autonomia privada, o princípio do pacta sunt
servanda, e o princípio da relatividade subjetiva, mas limitaram profundamente
seu conteúdo e alcance.
2 Fundamentos
do direito contratual: Principiologia
2.1 Princípio
da função social do contrato
O princípio da função social
do contrato determina que os interesses individuais das partes do contrato
sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se
apresentem.
A função social do contrato
pode ser definida como a finalidade que visa o ordenamento jurídico a conferir
as partes instrumentos jurídicos aptos a inibir, coibir quaisquer desigualdades
decorrentes da relação jurídica, relacionando-se assim, com a satisfação dos
interesses sociais. Em sua concepção moderna, destaca-se como elemento
garantidor do justo equilíbrio social nas relações contratuais, enquanto
instrumento de geração e circulação de riquezas e de caráter pedagógico entre
os contratantes1.
O contrato nasce de uma ambivalência, de uma
correlação essencial entre o valor do individuo e o valor da coletividade. O
contrato é um elo, que de um lado, põe o valor do individuo como aquele que o
cria, mas de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato
vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida.
Esse princípio representa um
golpe à teoria clássica contratual decorrente da socialização do direito, em
contraposição ao liberalismo predominante no século XIX e em boa parte do
século XX.
A função social não é apenas
uma restrição ao princípio da liberdade contratual fazendo parte do próprio
conceito de contrato, logo as restrições à liberdade contratual não se tratam
mais como exceções a um direito absoluto, mas sim como um instrumento, regulador
da disciplina contratual que deve ser utilizado não apenas na interpretação dos
contratos, mas na integração e concretização das normas contratuais
particularmente consideradas.
A função social busca a
conservação do contrato assegurando trocas úteis e justas, sem aniquilar o princípio
da autonomia privada deve compatibilizá-lo com os interesses sociais, bem como
impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato2.
___________________________________________________
¹ BIERWAGEN, Mônica
Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo código
civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 41-42; Nesse sentido ver: LIMA, Taísa
Maria Macena de. O contrato no Código Civil de 2002: função social e
principiologia. Revista do Tribunal Regional do Trabalho – 3ª Região, Belo
Horizonte, nº67, p. 51-63, jan./jun., 2003, p.54.
²
Azevedo
afirma: “ Aceita a ideia de função social do contrato, dela evidentemente não
se vai tirar a ilação de que, agora, os terceiros são parte no contrato, mas,
por outro lado, torna-se evidente que os terceiros não podem se comportar como
se o contrato não existisse. O artigo 421 do novo Código Civil constitui
cláusula geral , que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos
do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.”
A função exclusivamente
individual do contrato é incompatível com o Estado social caracterizado sob o
ponto de vista do direito pela tutela explicita da ordem econômica e social na
Constituição em seu art.170 3.
No
Código a função social não é simples limite externo ou negativo, mas limite
positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o
sentido que decorre dos termos “exercida em razão e nos limites da função social
do contrato” (art.421)4.
O princípio da função social
é a mais importante inovação do direito contratual brasileiro e, talvez a de
todo o Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do
consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse
social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não
configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional o
contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social5.
Este princípio é
reciprocamente complementar ao princípio da boa-fé objetiva, embora cada um
tenha determinado papel a desempenhar. Ambos são pontes entre o direito e a
ética, demonstrando o caráter relativamente aberto do sistema jurídico.
_____________________________________________________
3 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
I - soberania
nacional;
II - propriedade
privada;
III - função social
da propriedade;
IV - livre
concorrência;
V - defesa do
consumidor;
VI - defesa do meio
ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação;
VII - redução das
desigualdades regionais e sociais;
4 Art. 421. A liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
5 Nesse
sentido, Humberto Theodoro Júnior preconiza ainda que “A função social continua
sendo desempenhada pelo contrato de consumo nos reflexos que produz no meio
social, ou seja, naquilo que ultrapassa o relativismo do relacionamento entre
credor e devedor e se projeta no âmbito de toda a comunidade. A lei de consumo
protege, é verdade, o lado ético das relações entre fornecedor e consumidor.
Mas não é propriamente nesse terreno, que a verdadeira função social se
desenvolve, mas no expurgo do mercado de praxes inconvenientes que podem inviabilizar
o desenvolvimento econômico harmonioso e profícuo, tornando-o instrumento de
dominação e prepotência. Protege-se, enfim, o consumidor para que a economia de
mercado seja mais sadia e a mais desenvolvimentista, dentro do ideal econômico
da livre concorrência, e do ideal social do desenvolvimento global da comunidade.”
(THEODORO JÚNIOR, 2004).
A função social do contrato
pode implicar uma qualificação dos deveres já impostos pela boa-fé objetiva
(lealdade, colaboração, respeito a expectativas legítimas), pois enquanto a
boa-fé está mais afeita aos interesses das partes contratantes, a função social
do contrato está mais afeita aos interesses da coletividade.
Como é notória, a Lei nº
8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, constitui norma de
ordem pública e interesse social, pelo que consta do seu art. 1º, sendo também
norma princípiológica, pela previsão expressa de proteção aos consumidores
constante no Texto Maior, art. 5º, XXXII e art. 170, III.
Na esfera contratual, o CDC traz
a regra de que mesmo uma simples onerosidade ao consumidor poderá ensejar a
chamada revisão contratual, prevendo também o afastamento de uma cláusula
abusiva, onerosa, ambígua ou confusa (artigos 51 e 46)6 e a
interpretação do contrato sempre em benefício do consumidor (artigo 47)7.
Entendemos
que a intenção da expressão "função social do contrato" está intimamente ligada ao ponto de equilíbrio que
o negócio celebrado deve atingir e ao que se denomina princípio da equidade
contratual. Dessa forma, um contrato que traz onerosidade a uma das partes – tida como hipossuficiente
e/ou vulnerável, não está cumprindo o seu papel sociológico, necessitando de
revisão pelo órgão judicante.
Nelson Nery Júnior e Rosa
Maria de Andrade Nery anotam, em comentários ao art. 6º, inciso V, da Lei
8.078/90: "Para que o consumidor tenha direito à revisão do contrato, basta que haja onerosidade excessiva para ele, em
decorrência de fato superveniente. Não há necessidade de que esses fatos sejam
extraordinários nem que sejam imprevisíveis.
_____________________________________________________
6
Art. 51. São nulas de pleno
direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos e serviços que:
[...]IV - estabeleçam obrigações consideradas
iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
VI - estabeleçam
inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
[...] XV - estejam
em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não
obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar
conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem
redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.
7 Art. 47. As
cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao
consumidor.
As soluções da teoria da imprevisão,
com o perfil que a ela é dado pelo CC italiano 1467 e pelo CC 478, não são
suficientes para as soluções reclamadas nas relações de consumo. Pela teoria da
imprevisão, somente os fatos extraordinários e imprevisíveis pelas partes por
ocasião da formação do contrato é que autorizariam não sua revisão, mas sua resolução. A
norma sob comentário não exige nem a extraordinariedade nem a imprevisibilidade
dos fatos supervenientes para conferir, ao consumidor, o direito de revisão
efetiva do contrato, não sua resolução8.
Teríamos, portanto, com o
Código de Defesa do Consumidor, a adoção de outro fundamento para a revisão
contratual, a da revisão por simples onerosidade, que tem como embrião a teoria
da equidade contratual, que é motivada pela busca, em todo o momento, de um
ponto de equilíbrio nos contratos, afastando-se qualquer situação desfavorável
ao protegido legal.
Sem sombras de dúvida,
o tema "direito do consumidor" é de suma importância na atual
sistemática do direito privado, cabendo aos estudiosos e operadores do direito
encontrar um ponto de equilíbrio entre a sua socialização e a manutenção da
segurança do sistema apresenta o desafio do novo civilista, que é encontrar o
ponto de equilíbrio entre a segurança e a justiça: a utilização do princípio da
função social, sem que isto traga uma catástrofe ao sistema jurídico. Esta
tendência surgiu a partir da valorização, no âmbito contratual, dos chamados
"direitos de terceira geração", relacionados com o princípio da
fraternidade, com a pacificação social e com a busca do equilíbrio nas relações
negociais.
Nessa nova realidade,
tende-se a colocar, em primeiro plano, os direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos, em detrimento do interesse particular9.
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8 Fabiana Rodrigues
Barletta. A revisão contratual por onerosidade superveniente à contratação
positivada no Código de Defesa do Consumidor sob a perspectiva
civil-constitucional. Pág. 288.
9
"O
movimento de defesa do consumidor é recente, motivado pela conscientização
surgida no mundo ocidental entre os meios populares após a última revolução
industrial, motivado também pela influência norte-americana que se percebeu nos
últimos tempos".
NERY Junior,
Nelson. Código Civil Anotado e legislação extravagante. 2ª. Edição ver. e ampl.
São Paulo, 2003, Editora Revista dos Tribunais.
2.2 Princípio
da equivalência material
O princípio da equivalência
material busca realização e preservação do equilíbrio real de direitos e
deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos
interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio
contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações,
seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as
mudanças de circunstancias pudessem ser previsíveis.
O que interessa não é mais a
exigência cega do cumprimento do contrato da forma como foi assinado ou
celebrado, mas se a sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das
partes em detrimento da outra, aferível objetivamente. O princípio clássico do
pacta sunt servanda foi mitigado e passou a ser entendido no sentido de que o
contrato obriga as partes contratante nos limites do equilíbrio dos direitos e
deveres entre elas.
No Código de Defesa do
Consumidor recebeu denominações diversas e difusas, voltadas ao equilíbrio e à
equidade, enquanto o novo Código Civil apenas o introduziu explicitamente nos
contratos de adesão. O contrato de adesão disciplinado pelo Código Civil tutela
qualquer aderente, seja consumidor ou não, pois não se limita a determinada
relação jurídica como a de consumo4. Esse princípio abrange o princípio
da vulnerabilidade jurídica de uma das partes contratantes, que o Código de
Defesa do Consumidor destacou5.
O princípio da equivalência
material rompe a barreira da contenção da igualdade jurídica e formal. Ao juiz
estava vedada a consideração da desigualdade real doa poderes contratuais ou o
desequilíbrio de direito e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes,
pouco importando o abuso ou exploração do mais fraco pelo mais forte.
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4 Silva Filho comenta: “A
maioria dos contratos de consumo realiza-se por adesão, significando uma
redução de custos, uma uniformidade de tratamento e uma racionalização contratual. Dentro do
princípio capitalista, deve-se buscar o máximo de lucros com o mínimo de
custos, e isso se aplica aos contratos de consumo, tendo em vista que seriam
excessivamente onerosas as relações se em cada uma delas houvesse uma prévia
deliberação.” SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica filosófica e direito..., pg 249.
5 Na verdade os
fornecedores acabam por ditar as regras na sociedade de consumo por
meio dos contratos de adesão, de cláusulas gerais de contrato, colocando os
consumidores em posição de vulnerabilidade, fragilidade perante o poderio
econômico, técnico, jurídico e social.” BONATTO, Código de Defesa do Consumidor...,
p.13-14.
O princípio da equivalência
material desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O
aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante
das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulnerável
o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente do contrato de adesão.
Esta presunção é absoluta e não pode ser afastada.
O aspecto objetivo considera
o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presentes
na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de
circunstancias supervenientes que levam a onerosidade excessiva para uma das
partes.
2.3 Princípio
da boa-fé objetiva
O princípio da boa-fé é a
regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais.
Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas
normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da
conduta ou comportamento reconhecível no mundo social6.
Os
contratos devem obedecer à sua função social. Não podem estes trazer
onerosidades excessivas, desproporções, ou injustiça social. Bem como, não
podem também violar interesses metaindividuais ou individuais relacionados com
a proteção da dignidade humana.
Paralelamente à função social dos contratos, temos
a boa-fé.
Identifica
Venosa que há três funções nítidas para o conceito da boa fé objetiva: a função
interpretativa (art. 113 do C.C.)7 a função de controle dos limites
do exercício de um direito (art. 187)8 e a função de integração do
negócio jurídico (art. 421 do C.C.)9.
_____________________________________________________
6 “O princípio da boa-fé
objetiva é uma regra de conduta, de comportamento ético, social imposta às
partes, pautada nos ideais de honestidade, retidão e lealdade, no intuito de
não frustrar a legítima confiança, expectativa da outra parte, tendo ainda, a
finalidade de estabelecer o equilíbrio nas relações jurídicas, esta se traduz
como a concretização do princípio da dignidade humana no campo das obrigações,
e, por conseguinte, no direito contratual..” MARTINS-COSTA (2000, p.382-409);
7 Art. 113. Os
negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração.
A
boa fé objetiva prevista no art. 42210, é alusiva a padrão
comportamental pautado na lealdade e probidade (integridade de caráter)
impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação
principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de
colaborar e atuação diligente. Ressalta ainda a mestra que a violação desses
deveres anexos constitui espécie de inadimplemento sem culpa.
A
cláusula geral contida no art. 422 do novo codex impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, corrigir, suprir o contrato segundo a boa fé objetiva entendida como exigência de
comportamento leal dos contratantes. Sendo incompatível com conduta abusiva
principalmente em face da proibição do enriquecimento sem causa11.
Cristiano
Chaves de Farias, aborda o tema ao comentar sobre a caracterização do abuso de
direito revelando que para a caracterização do ato abusivo tem-se como pedra de
toque, o elemento distintivo que é o motivo legítimo, que deve ser extraído das
condições objetivas, nas quais o direito foi exercido, cotejando-as com sua
finalidade e com a missão social que lhe é atribuída, com o padrão de
comportamento dado pela boa fé e com a consciência jurídica dominante.
Embora não previsto na parte
geral do Código Civil em vigor, o princípio da boa-fé objetiva foi objeto de
tutela do Código de Defesa do Consumidor, nos artigos 4º, III, e 51, IV, quando
trata, respectivamente:
_____________________________________________________
8 Art. 187. Também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
9 Art. 421. A liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
10 Código
Civil. Artigo 422. “ Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e
boa-fé.”
11 Arruda
Alvim. Cláusulas Abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 33. “Essa
padronização veio, justamente pelo que se acabou de dizer, a encontrar
determinados limites, na ordem jurídica, exatamente pelas circunstâncias de
avantajamento de uma das partes contratantes, a dano eventual da outra parte,
que é o aderente. Tais limitações, de ordem pública, obstam certas vantagens,
na medida em que estas encontrem-se ou possam estar definidas como abusivas.”
a) da “harmonização dos
interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e
tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;"
b) da nulidade de cláusulas
contratuais que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a
boa-fé ou a equidade”.
Dessa
forma, a boa fé é elevada ao patamar de princípio do sistema de proteção
consumerista, sustentada veementemente pela jurisprudência dos Tribunais
Superiores12.
A vinculação que o Código de
Defesa do Consumidor faz, quando menciona a boa-fé, com a Constituição,
especialmente com os princípios da ordem econômica, só reforça a ideia de que o
princípio da boa-fé é um elo de ligação entre o direito civil e o direito constitucional.
Mesmo antes do advento do
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), uma tímida jurisprudência dos
tribunais já se manifestava no sentido de adoção da boa-fé nas relações
contratuais, contra a grande maioria, que presa ao sistema fechado, não admitia
a adoção de princípios não expressos no ordenamento jurídico.
Nas relações de consumo o
contrato deve ser redigido de acordo com as normas do CDC, as quais são de
ordem pública e interesse social (art. 1º do CDC) e interrogáveis pela vontade
das partes. Esse diploma legal estabelece um patamar de lealdade e controle em
que a boa-fé passa a ser, objetivamente, um pensar não em si mesmo, mas sim
pensar que o outro tem expectativas legítimas.
_____________________________________________________
12 Direito do Consumidor. Contrato de seguro de vida
inserido em contrato de plano de saúde. Falecimento da segurada. Recebimento da
quantia acordada. Operadora do plano de saúde. Legitimidade passiva para a
causa. Princípio da boa fé objetiva. Quebra de confiança. Os princípios da boa
fé e da confiança protegem as expectativas do consumidor a respeito do contrato
de consumo "(STJ, Resp. 590.336, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T.,
j.07/12/04, p. DJ 21/02/05). "O simples atraso de uma das parcelas do
prêmio não se equipara ao inadimplemento total da obrigação do segurado, e,
assim, não confere à seguradora o direito de descumprir sua obrigação
principal, que, no plano de saúde, é indenizar pelos gastos despendidos com
tratamento de saúde" (STJ, Resp. 293.722, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T.,
j. 26/03/01, p. 28/05/01).
Ou seja, que a relação que se forma entre
consumidor e fornecedor não serve somente as vantagens do primeiro, mas também
que o outro atinja o fim previsto no contrato que resultou de um prévio
encontro entre os dois.
O Código Civil em seu art.
422 associou ao princípio da boa-fé o que denominou de princípio da probidade.
No direito contratual a probidade é qualidade exigível sempre à conduta de
boa-fé13.
Outro ponto relevante em que
se nota certa aproximação entre os dois códigos, é o dos limites objetivos do
princípio da boa-fé nos contratos. A melhor doutrina tem ressaltado que a
boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas
obrigações, mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração
ou após a extinção do contrato. Assim, para fins do princípio da boa-fé
objetiva são alcançados os comportamentos dos contratantes antes, durante e
após o contrato.
O Código de Defesa do
Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda
informação ou publicidade suficientemente precisa (art.30) 14, ao
impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e
compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art.46)15, ao
tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré –contratos (art.48)16
e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição após o
contrato de aquisição de produto (art.32)17.
_____________________________________________________
13 Explica Sílvio de Salvo
Venosa (Direito civil, 2003, v. 2, p. 378) que, para a análise da boa-fé
objetiva, o intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, no
caso concreto. É um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais
estabelecidos e reconhecidos. As noções de agir corretamente com o próximo, ou
seja, de honrar a palavra dada, de não causar prejuízos desnecessários a
outrem, de cooperação para com o outro contratante, refletem o conceito de
norma ética de conduta, segundo os padrões do homem médio. Trata-se de uma
norma impositiva de conduta leal, geradora de um dever de correção que domina o
tráfego negocial.
14 “Art. 30. Toda informação ou publicidade,
suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação
com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o
fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que
vier a ser celebrado.”
15 “Art.
46, CDC. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os
consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio
de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a
dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.”
16 “Art. 48. As
declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e
pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando
inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos.”
3 Princípios
contratuais e o direito consumerista
A carta brasileira
estabeleceu a partir de 1988 um novo paradigma, pelo qual a vontade das partes
em relação ao direito contratual é um norte, mas a todo momento poderá ser
modificada a contratação caso sejam não observados os fins que as vinculações
devem buscar. Assim o contrato tem seu espaço reduzido frente ao espaço ocupado
pelos princípios constitucionais.
Surgem novos princípios a
reger os contratos de consumo, os quais tornam relativos os princípios gerais,
que no liberalismo atingiram força marcante nessas relações tratados a diante.
Os princípios liberais do
contrato (autonomia da vontade, pacta sunt servanda e relatividade subjetiva)
afirmaram a liberdade individual contribuindo para o controle dos poderes
públicos, mas foram insuficientes para controlar os abusos dos poderes
privados.
3.1 Princípio
da Vulnerabilidade e da Proteção
A vulnerabilidade
caracteriza-se pela possibilidade potencial que um sujeito tem de ser atingido
ou violado em seus direitos em uma relação jurídica em virtude da condição de
inferioridade em que se apresenta seja ela de natureza econômica, técnica, social
ou jurídica e de hipossuficiência como uma espécie de
_____________________________________________________
“Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento
da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da
obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao do adimplemento.
§ 1º A conversão da
obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor
ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático
correspondente.
§ 2º A indenização
por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do Código de Processo Civil ).
§ 3º Sendo
relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do
provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após
justificação prévia, citado o réu.
§ 4º O juiz poderá,
na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu,
independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a
obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5º Para a tutela
específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz
determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de
coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além
de requisição de força policial.
17 “Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão
assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a
fabricação ou importação do produto.
vulnerabilidade
acentuada, pela qual o sujeito de uma relação jurídica se mostra efetivamente
débil em relação a outro, estando em situação de fraqueza.
A presunção é definida em
lei como se dá com o consumidor, no Código de Defesa do Consumidor, e com o
aderente no novo Código Civil. A presunção é absoluta, logo o consumidor e o
aderente, ricos ou pobres, são juridicamente vulneráveis, pois submetidos ao
poder negocial da outra parte.
Os princípios sociais são
comuns a todos os contratos ainda quando não se configure o poder negocial
dominante. Porém nas hipóteses em que há presunção legal de sua ocorrência,
alguns princípios complementares adquirem autonomia e com eles se equiparam.
Tal fato se dá com o princípio da vulnerabilidade e da informação nas relações
de consumo, os quais no plano geral desdobram o princípio da equivalência
material e da boa-fé objetiva. No direito do consumidor ainda se cogita do
princípio da razoabilidade que atuaria como condição e limite dos princípios da
equivalência material e da vulnerabilidade; a defesa do consumidor e a
interpretação favorável vão até os limites da razoabilidade18.
Benjamim
esclarece que: “O consumidor é reconhecidamente vulnerável no mercado de
consumo. Só que entre todos que são vulneráveis, há outros cuja vulnerabilidade
é superior à média, são os consumidores ignorantes e de pouco conhecimento, de
idade pequena ou avançada, de saúde frágil, bem como aqueles cuja posição
social não lhes permite avaliar com adequação o produto ou serviço que estão
adquirindo.”
A vulnerabilidade é traço universal de todos
os consumidores, ricos ou pobres, educados ou não. Já a hipossuficiência é
marca pessoal limitada a alguns, até mesmo a uma coletividade, mas nunca a
todos de modo geral.
_____________________________________________________
18 Código de defesa do Consumidor – artigo 4º: A
política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das
necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a
proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida,
bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios:
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor
no mercado de consumo.§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado
receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela
liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.
§ 4º O juiz poderá,
na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu,
independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a
obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
A vulnerabilidade justifica a existência do
Código e a hipossuficiência, legitima alguns tratamentos diferenciados no
interior do próprio Código (art. 6º. VIII)19.
3.2 Princípio
da repressão eficiente aos abusos
Este princípio está intimamente
ligado ao princípio da função social da propriedade, da empresa e do contrato,
tendo ligações com o princípio da solidariedade social, da proporcionalidade e
razoabilidade.
Para
a repressão eficiente dos abusos está prevista toda uma normativa que passa
tanto pela proteção administrativa como pela legislativa e judicial, englobando
as áreas de medidas de policia administrativa, de punição penal e responsabilidade
civil. Importante ressaltar a importância do Ministério Público e Pocons como elos dessa proteção
estatal.
3.3 Princípio
da harmonia do mercado de consumo
A
politica nacional com juntamente com a proteção do consumidor atenta ainda para o desenvolvimento do
mercado tendo em vista sempre os princípios e valores constitucionais
(dignidade humana, livre-iniciativa, justiça social, meio ambiente , etc). O
objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo deve ser a harmonização
dos interesses envolvidos e não o confronto de ânimos. Interessa as partes,
consumidores e fornecedores, o implemento das relações de consumo, com
atendimento das necessidades dos primeiros e o cumprimento do objetivo
principal que justifica a existência do fornecedor. Colima-se assim o
equilíbrio entre as partes.
Por
outro lado, a proteção do consumidor deve ser compatibilizada com a necessidade
de desenvolvimento econômico e tecnológico em face da dinâmica
_____________________________________________________
19 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
VIII - a
facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da
prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiências;
própria das relações de consumo que não podem
ficar obsoletas e entravadas em nome da defesa do consumidor.
Considerações Finais
Os princípios sociais dos
contratos ingressaram no novo Código Civil uma década após o advento do Código
de Defesa do Consumidor e quase um século de concepção e vigência do anterior
Código Civil, cuja ideologia liberal e oitocentista tornou-se incompatível com
a ideologia constitucionalmente estabelecida desde a Carta de 1934, quando se
inicia o Estado social brasileiro. Ao longo do século XX a convivência da
constituição social com o Código liberal gerou impasses e contradições, cujo
fosso foi aprofundado com o Código de Defesa do Consumidor, com a distinção que
se impôs entre contratos comuns civis e mercantis e contratos de consumo (a
grande maioria). Aos primeiros a difícil
aplicação dos princípios sociais dos contratos deveu-se ao esforço
argumentativo de parte da doutrina voltada à constitucionalização do direito
civil, cujo principal postulado reside na eficácia imediata e prevalecente das
regras e princípios constitucionais sobre o direito infraconstitucional, que
melhor reproduzem os valores existentes na sociedade em seu momento histórico.
Os princípios liberais do
contrato (autonomia da vontade, pacta sunt servanda e relatividade subjetiva)
afirmaram a liberdade individual contribuindo para o controle dos poderes
públicos, mas foram insuficientes para controlar os abusos dos poderes
privados.
Por essa razão, assumiu de
importância no Estado social à consideração da vulnerabilidade em que se
encontram as pessoas em certas situações negociais. A vulnerabilidade jurídica
vai além da debilidade econômica da parte contratante, pois interessa o poder
negocial dominante, ou seja aquela que se presume em posição de impor sua
vontade e seu interesse a outra. A presunção é definida em lei como se dá com o
consumidor, no Código de Defesa do Consumidor, e com o aderente no novo Código
Civil. A presunção é absoluta, logo o consumidor e o aderente, ricos ou pobres,
são juridicamente vulneráveis, pois submetidos ao poder negocial da outra
parte.
Os princípios sociais são
comuns a todos os contratos ainda quando não se configure o poder negocial
dominante. Porém nas hipóteses em que há presunção legal de sua ocorrência, alguns princípios
complementares adquirem autonomia e com eles se equiparam. Tal fato se dá com o
princípio da vulnerabilidade e da informação nas relações de consumo, os quais
no plano geral desdobram o princípio da equivalência material e da boa-fé
objetiva. No direito do consumidor ainda se cogita do princípio da
razoabilidade que atuaria como condição e limite dos princípios da equivalência
material e da vulnerabilidade; a defesa do consumidor e a interpretação
favorável vão até os limites da razoabilidade.
A compreensão que se tem
hoje dos princípios sociais do contrato não é de antagonismo radical aos
princípios liberais, pois estes como aqueles refletiram etapas da evolução do
direito e do Estado Moderno. No Estado social os princípios liberais são
compatíveis quando estão limitados e orientados pelos princípios sociais, cuja
prevalência se dá quando não são harmonizáveis.
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