Gleiciane
Ferraz de Sousa Levino[1]
RESUMO
O Código Civil Brasileiro estabelece uma
regulamentação própria sobre a alienação de estabelecimento empresarial,
conhecida como trespasse. A alienação de estabelecimento empresarial é a venda
ou o aluguel de um complexo de bens organizado, para exercício de uma empresa.
O presente artigo vem abordar a discussão jurídica acerca dessa regulamentação
e outros aspectos decorrentes da venda de estabelecimento empresarial como
responsabilidade, insolvência, concorrência, aviamento, entre outros.
1 INTRODUÇÃO
Antes de adentrarmos no
mérito sobre a venda de estabelecimento empresarial, é importante descrever o
conceito de estabelecimento empresarial que está previsto no artigo 1.142 do
Código Civil Brasileiro. Estabelecimento empresarial é um complexo de bens
organizado, para o exercício da empresa. Esse artigo vem esclarecer o que
muitas pessoas confundem que é o fato de relacionarem o estabelecimento
comercial somente com o imóvel. Gonçalves (2011) registra em sua obra o
seguinte comentário:
Pelo estatuto civil, estabelecimento é o
“complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por
sociedade empresária”. Veja-se, portanto, que o estabelecimento consagra a
reunião, de forma organizada, de todos os instrumentos voltados ao
desenvolvimento da atividade empresarial e à obtenção de lucro (GONÇALVES, 2011,
p. 39).
De
acordo com a doutrina majoritária o estabelecimento empresarial é também chamado
de fundo de comércio, azienda ou fundo empresarial. Coelho (2011) não compartilha dessa idéia,
para ele estabelecimento empresarial é diferente de fundo de comércio. Vejamos
o que diz o doutrinador:
No meio jurídico, adota-se ora a expressão
“fundo de comércio” [ ...]. Prefiro falar em “fundo de empresa”, tendo em vista
que o mesmo fato econômico e suas repercussões jurídicas se verificam na
organização de estabelecimento de qualquer atividade empresarial. Registro que
não é correto tomar por sinônimos “estabelecimento empresarial” e “fundo de
empresa”. Este é um atributo daquele; não são, portanto, a mesma coisa.
Precise-se: o estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o empresário
reúne para explorar uma atividade econômica, e o fundo de empresa é o valor agregado
ao referido conjunto, em razão da mesma atividade (COELHO, 2011, p. 114).
O estabelecimento empresarial é composto de bens que
podem ser corpóreos (sede da empresa, terrenos, depósitos, maquinário utilizado
para a produção de seus produtos, matérias-primas etc.) ou incorpóreos (a
marca, o nome empresarial, a patente, o ponto comercial, o direito de renovação
compulsória do contrato locatício etc.).
É uma universalidade, mas não se trata de bens destinados
a um fim determinado em lei (universalidade de direito), mas de um conjunto de
bens com finalidade vinculada à vontade do empresário (universalidade de fato).
Portanto, esse conjunto de bens corpóreos e incorpóreos, constitui uma
universalidade de fato, que pode ser objeto de negócios jurídicos, como a
alienação.
2
DESENVOLVIMENTO
O art. 1.143 do Código Civil afirma que o estabelecimento
é objeto de direito, dessa forma, pode ser celebrado um contrato que tenha por
objeto a alienação, o usufruto ou o arrendamento de estabelecimento. Não se
pode confundir esse conjunto de bens com sujeito de direito, pois este é o
empresário, é quem explora a atividade.
A venda de estabelecimento empresarial recebe o nome
doutrinário de “trespasse”. É o nome do contrato de compra e venda de
estabelecimento empresarial. Segundo
Coelho (2011), no trespasse o estabelecimento empresarial deixa de integrar o
patrimônio de um empresário e passa para o de outro. O objeto da venda é o
complexo de bens corpóreos e incorpóreos, envolvidos com a exploração de uma
atividade empresarial.
Portanto, trespasse é a alienação de estabelecimento de
um empresário individual ou sociedade empresária a outro que irá prosseguir com
a exploração da atividade empresarial.
A transferência do estabelecimento, salvo disposição em
contrário, importa ainda em sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados
para exploração daquele, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros
contratantes rescindir o contrato em 90 dias, a contar da publicação da
transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, nesse caso, a
responsabilidade do alienante (art. 1.148).
Assim, aquele que adquire um estabelecimento empresarial
fica responsável pelos débitos anteriores à aquisição, se regularmente
contabilizados, assim como os contratos celebrados, conforme bem explica
Gonçalves (2011):
O trespasse implica a transferência do
conjunto de bens organizados pelo alienante ao adquirente, de modo que este
possa prosseguir com a exploração da atividade empresarial. Ele assumirá a
posição do empresário primitivo, devendo arcar com todos os contratos já
celebrados por este, por força da atividade desenvolvida (GONÇALVES, 2011, p.
40).
No entanto, o trespasse não inclui cessão automática do
contrato de locação, que deverá ser autorizado pelo locador, pois o contrato de
locação é regulado por lei específica que diz que o locador precisa autorizar a
sub-rogação.
Há a sub-rogação automática do empresário nos contratos
de caráter pessoal, mas não há essa sub-rogação nos contratos de locação,
devido essa espécie ser disciplinada na a lei de locação. Logo a Lei 8.245/91 –
Lei de Locação em seu Art. 13 descreve que o locador precisa autorizar a
sub-rogação para que esta seja válida. O enunciado 234 do Conselho da Justiça
Federal expressa esse entendimento.
Nesse
sentido se manifestou o Superior Tribunal de Justiça ao julgar um recurso
especial, abaixo transcrito:
RECURSO ESPECIAL. TRANSFERÊNCIA
DO FUNDO DE COMÉRCIO. TRESPASSE.
CONTRATO DE LOCAÇÃO. ART. 13. DA LEI N. 8.245/91. APLICAÇÃO À LOCAÇÃO COMERCIAL. CONSENTIMENTO DO LOCADOR. REQUISITO
ESSENCIAL. RECURSO PROVIDO. 1. Transferência do fundo de comércio. Trespasse.
Efeitos: continuidade do processo produtivo; manutenção dos postos de trabalho;
circulação de ativos econômicos. 2. Contrato de locação. Locador. Avaliação de
características individuais do futuro inquilino. Capacidade financeira e
idoneidade moral. Inspeção extensível,
também, ao eventual prestador da garantia fidejussória. Natureza pessoal do
contrato de locação. 3. Desenvolvimento econômico. Aspectos necessários: proteção
ao direito de propriedade e a segurança jurídica. 4. Afigura-se destemperado o
entendimento de que o art. 13 da Lei do Inquilinato não tenha aplicação às
locações comerciais, pois, prevalecendo este posicionamento, o proprietário do
imóvel estaria ao alvedrio do inquilino, já que segundo a conveniência deste, o
locador se veria compelido a honrar o ajustado com pessoa diversa daquela
constante do instrumento, que não rara as vezes, não possuirá as qualidades
essenciais exigidas pelo dono do bem locado (capacidade financeira e idoneidade
moral) para o cumprir o avençado. 5. Liberdade de contratar. As pessoas em geral possuem plena liberdade
na escolha da parte com quem irão assumir obrigações e, em contrapartida, gozar
de direitos, sendo vedado qualquer disposição que obrigue o sujeito a contratar
contra a sua vontade. 6. Aluguéis. Fonte de renda única ou complementar
para inúmeros cidadãos. Necessidade de proteção especial pelo ordenamento
jurídico. 7. Art. 13 da Lei n. 8.245/914 aplicável às locações comerciais. 8.
Recurso especial provido. (STJ. 3ª Turma. REsp 1202077/MS . Rel. Min. Vasco Della Giustina. Julgamento: 01.03.2011. DJe
10.03.2011, sem grifos no original).
Então, o empresário, para fins de preservar a integridade
de seu investimento, deverá segundo Coelho (2011, p. 138) “ao locar imóvel para
a instalação da empresa, deve negociar com o locador a inserção, no contrato de
locação, da anuência prévia para eventual cessão que contemple a sub-rogação”.
Coelho (2011) atenta para o fato de que com o trespasse
há a transferência de titularidade, todavia em caso de aquisição de quotas de
sócio por outra pessoa não há transferência de titularidade, não há contrato de
trespasse, mas um contrato de cessão de quotas.
É importante mencionarmos que estabelecimento é diferente
de patrimônio, para diferenciarmos um contrato de trespasse de um contrato de
compra e venda. Podemos perceber que
existe essa distinção quando observamos o Enunciado 233 CJF que declara que o
imóvel alugado integra o patrimônio da empresa, mas não integra o
estabelecimento.
A dúvida sobre essa diferença pode ser gerada quando a
empresa possui, por exemplo, dois estabelecimentos e resolver vender um, ocorre
nesse caso o trespasse, mas se a empresa resolve vender o imóvel de um dos estabelecimentos
se trata de contrato de compra e venda, pois esse imóvel integra apenas o
patrimônio da empresa. Por outro lado, a venda de bem essencial ao exercício da
atividade empresarial configura a venda do estabelecimento ou seja o trespasse.
A responsabilidade pelas dívidas anteriores do
estabelecimento está disciplinada no Art. 1.148 do CC/02. O referido artigo
declara que somente as dívidas contabilizadas que serão repassadas ao
adquirente. Caso não esteja regularmente contabilizada ele não responde.
No entanto, existem exceções quando se trata de dívidas
trabalhistas e tributárias, pois possuem regras próprias trazidas pelos artigos
1º e 448º da CLT e o Art. 133 do Código Tributário Nacional.
A lei determina que o devedor responde pela dívida de
forma solidária com o adquirente pelo prazo de um ano. Se a dívida for vencida,
conta-se um ano da publicação. Considera-se o momento da publicação, por
exemplo, quando se faz um contrato de compra e venda e registra o mesmo na
junta comercial. Se a dívida for vincenda, conta-se um ano da data do
vencimento.
Quanto à insolvência, o estabelecimento empresarial é uma
das principais garantias dos credores da empresa. Em caso de inadimplência
poderão executar esse patrimônio. Por essa razão, ele não pode ser vendido sem
que a empresa conserve bens suficientes para pagar suas dívidas, ou sem a
concordância de seus credores de modo expresso ou tácito, em 30 dias, a contar
da sua notificação, caso contrário, eles perdem a garantia que possuem (art.
1.145).
Portanto, para uma venda segura do estabelecimento,
deve-se em primeiro lugar quitar todas as dívidas junto aos credores, através
de notificação, ou buscar o consentimento deles para a venda. Se a empresa vender
o bem, tornando-se insolvente e não pagar os credores, o contrato de trespasse
não terá eficácia. O devedor que comprou o estabelecimento terá que devolver o
bem, voltando tudo como era antes.
Também está prevista essa situação na Lei de Falência, n.
11.101/2005, art. 94, III, c, nos
casos de venda fraudulenta de estabelecimento, isto é, sua venda sem a
anuência de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu
passivo.
Nesse processo de venda não podemos esquecer do instituto
da concorrência para o alienante que em regra geral deve ser regulado por
cláusula expressa no contrato de trespasse. Todavia se o contrato de trespasse
for omisso, aplica-se a regra do Art. 1.147, CC/02. Este significa que o
alienante não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos
subseqüentes a transferência.
O motivo para tal proibição seria a concorrência desleal
com o adquirente de seu antigo estabelecimento, o qual encontraria profundas
dificuldades em desenvolver a atividade, pois o alienante acabaria atraindo
para o novo local de seus negócios a clientela que formou no antigo. O parágrafo
único do art. 1.147 do CC/02 dispõe que esse desvio de clientela estende-se também
às hipóteses de arrendamento e usufruto do estabelecimento durante o prazo
desses contratos
Não se pode levar uma interpretação literal e restrita dessa
regra, pois sempre se deve analisar o caso concreto. A definição de
concorrência muda com cada circunstância fática. Por exemplo, uma rua
movimentada e cheia de comercio fica amenizada a questão da concorrência, mas
um estabelecimento em uma cidade do interior que possui um comércio pequeno a
versão de concorrência é mais relevante.
Quanto à penhora do estabelecimento empresarial a Súmula
451 do Superior Tribunal de Justiça diz: “é legítima a penhora da sede do
estabelecimento comercial”. O julgado, abaixo citado, que embasou referida
súmula é completo e conciso além de bastante esclarecedor:
“1. A penhora de imóvel no qual se localiza o
estabelecimento da empresa é, excepcionalmente, permitida, quando inexistentes
outros bens passíveis de penhora e desde que não seja servil à residência da
família. 2. O artigo 649, V, do CPC, com a redação dada pela Lei n.
11.382/2006, dispõe que são absolutamente impenhoráveis os livros, as máquinas,
as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis
necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão. 3. A interpretação
teleológica do artigo 649, V, do CPC, em observância aos princípios
fundamentais constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores
sociais do trabalho e da livre-iniciativa (artigo 1º, incisos III e IV, da
CF/88) e do direito fundamental de propriedade limitado à sua função social
(artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da CF/88), legitima a inferência de que o imóvel
profissional constitui instrumento necessário ou útil ao desenvolvimento da
atividade objeto do contrato social, máxime quando se tratar de pequenas empresas,
empresas de pequeno porte ou firma individual. 4. Ademais, o Código Civil de
2002 preceitua que: ‘Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de
bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
empresária’.5. Conseqüentemente, o ‘estabelecimento’ compreende o conjunto de bens,
materiais e imateriais, necessários ao atendimento do objetivo econômico
pretendido, entre os quais se insere o imóvel onde se realiza a atividade
empresarial. 6. A Lei n. 6.830/80, em seu artigo 11, § 1º, DIREITO COMERCIAL —
DIREITO DE EMPRESA E SOCIEDADES EMPRESÁRIAS 43 determina que, excepcionalmente, a penhora poderá recair
sobre o estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, regra especial
aplicável à execução” (STJ, REsp 1.147.767/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 4-2- 2010, sem grifos no original).
O entendimento do julgado acima pode ser concluído no
sentido de que a penhora do estabelecimento não passou a ser a regra, pois é
cabível apenas quando inexistentes outros bens e desde que não seja utilizado como
residência da família do empresário.
Por fim, algo muito importante que deve ser considerado
no momento da venda do estabelecimento é o chamado aviamento ou goodwill. Segundo Oscar Barreto Filho,
doutrina majoritária, aviamento é o potencial de lucratividade do
estabelecimento, é um atributo do estabelecimento, e não seu elemento
constitutivo. O valor do aviamento entra no calculo do valor ajustado no
contrato de trespasse, pois ele compõe o estabelecimento, considerado um bem incorpóreo.
Muitas pessoas confundem aviamento com clientela, mas são
institutos diferentes, porém são intimamente interligados. Segundo Coelho
(2011) “Clientela é o conjunto de pessoas que habitualmente consomem os
produtos ou serviços fornecidos por um empresário”. O potencial e sucesso de um
estabelecimento depende de uma boa clientela, mas a clientela não integra o
estabelecimento e portanto impossível de ser vendida.
3 CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O Código Civil de 2002 regulamentou a alienação do
estabelecimento empresarial de forma bem específica, o trespasse, conferindo
tutela jurídica ao estabelecimento de que já havia ocorrendo na doutrina e na
jurisprudência. Uma interpretação mais restritiva das novas normas se faz
necessária para atender os desejos da lei no sentido de que não haja fraude
decorrente de débitos do alienante. Respeitando as premissas estipuladas em lei
o estabelecimento se torna um instrumento prático para a alienação de ativos
empresariais.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1:
direito de empresa / Fábio Ulhoa Coelho. — 15. ed. — São Paulo: Saraiva, 2011.
GONÇALVES, Maria
Gabriela Venturoti Perrotta Rios. Direito
comercial: direito de empresa e sociedades empresárias – 4. ed. – São Paulo
: Saraiva,2011. – (Coleção sinopses jurídicas; v. 21)
JUSBRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª turma.
REsp 1202077/MS
. Rel. Min. Vasco Della
Giustina. Julgamento:
01.03.2011. DJe 10.03.2011. Disponível em <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=trespasse&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em
20.09.2012
Vade Mecum Compacto
de Sireito Rideel / Obra coletiva de
autoria da Editora Rideel. – 3. Ed. – São Paulo: Rideel, 2012. – (Série
Vade Mecum)
[1]
Acadêmica do curso de direito da Universidade Estadual de Roraima (UERR).
Email: Ferraz.gleiciane@gmail.com
Olá Gleiciane,
ResponderExcluirParabéns pelo excelente artigo. Você foi muito feliz na escolha do tema e abordagem do assunto.
Contudo, gostaria de fazer algumas pequenas observações:
a) Em regra, introdução e conclusão não comportam citações. A introdução representa a porta de entrada para o resultado de um trabalho, ela tem a função de conduzir o leitor para um contato inicial com o objeto da pesquisa. Deve ser um convite para que o leitor se aventure na leitura completa do texto.
b) O seu artigo, embora bem elaborado, esqueceu a introdução e partiu logo para o que poderíamos chamar de primeiro tópico (conceito de estabelecimento empresarial).
c) Você teria sido mais feliz se tivesse dividido o desenvolvimento em tópicos. Isso faz com que a leitura se torne mais "leve". Embora seu estilo de escrita seja muito bom.
d) No penúltimo parágrafo do desenvolvimento você cita Oscar Barreto Filho, contudo não é possível identificar esse autor na referência bibliográfica . Se é caso de apud deve ser feita a devida citação segundo as normas da ABNT.
Abraço.