Dennyson Penha
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a
possibilidade da utilização do princípio da boa- fé como instrumento de
controle das cláusulas contratuais insertas nos contratos para o consumo
possibilitando, ademais, a compreensão do nexo de causalidade existente entre a
boa- fé e o conceito de equilíbrio das posições contratuais, sem o qual não se
pode entender a noção de abusividade encontrada no artigo 51 do Código de
Defesa do Consumidor.
Palavras-chave:
princípio, cláusulas, consumo, causalidade, equilíbrio, abusividade, boa-fé.
ABSTRACT
The aim of this paper is to
analyze the possibility of using the principle of good faith as a tool to
control inserts clauses in contracts allowing for consumption, in addition,
understanding the causal link between good faith and the concept of balance of
contract positions, without which we can not understand the notion of outrageousness
found in article 51 of the Code of Consumer
Protection.
Keywords: principle, clauses, use, causality, balance, outrageousness,
good faith.
1. Introdução
Faz-se necessário analisar a
possibilidade de controle das cláusulas contratuais abusivas mediante o emprego
do princípio da boa- fé, previsto no n. IV do art . 51 do CDC, tendo em vista
que as relações contratuais nos dias atuais, especialmente as relações de
consumo, são fortemente influenciadas pela economia de mercado, reflexo do
processo de globalização crescente pelo qual passa a sociedade1.
1
Todo este processo, agravado pela eclosão das duas
grandes guerras mundiais, e, posteriormente, pela própria globalização, levou o
Estado a intervir na economia, editando leis que combatessem a usura, a
eliminação da concorrência e a própria lesão nos contratos.(PABLO STOLZE)
O
consumo depende do desenrolar da economia de mercado, tendo em vista que os
contratos são instrumentos de circulação de riquezas, logo há uma relação
direta entre economia e contratos de consumo.
Os
contratos de adesão surgem como exigência desse mundo econômico e globalizado,
como forma de proporcionar maior uniformidade, rapidez, eficiência e dinamismo
às relações contratuais, especialmente as de consumo. Na moderna sociedade não
há espaço exclusivo para os contratos paritários, isto é, que ensejassem uma
discussão prévia entre o consumidor e o fornecedor2.
Entretanto,
o contrato de adesão traz consigo um perigo, que é a existência de cláusulas
abusivas, onde apenas uma das partes, isto é, aquele que está propondo a
aderência a toda a proposta, sai beneficiado em relação ao aderente. A Lei
8.078, de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor surge como
uma forma de controle das cláusulas abusivas nos contratos de adesão, tendo
como finalidade a salvaguarda dos direitos do consumidor nas relações
contratuais de consumo.
Ao
longo do presente artigo, analisaremos os conceitos e as características desses
contratos de adesão, suas cláusulas abusivas e os instrumentos de proteção
previstos no Código de Defesa do Consumidor.
2.
Condições gerais dos
contratos e contrato de adesão
A partir de 1850, a concepção
tradicional do contrato começa a ruir. A mudança nos meios de produção fez
surgir um novo tipo de sociedade, os valores eram outros e dogmática individualista não fazia mais parte
do meio social. A Revolução Industrial fez surgir a sociedade de consumo, com um sistema de produção massificada e
comércio jurídico despersonalizado, pois passou a ser dirigido a uma clientela
diversificada e anônima.
Aos poucos, os contratos paritários
ou individuais3, cederam vez a novas técnicas contratuais, capazes
de satisfazer as necessidades da nova realidade econômica e social.
2 Hoje, não mais os coronéis de outrora, mas
grandes indústrias, empresas e instituições financeiras, muitas delas formando
cartéis, lançam no mercado produtos e serviços, alguns de primeira necessidade,
os quais são adquiridos por consumidores de todas as idades, sem que possam
discutir os termos do negócio que celebram, os juros que são estipulados e as
garantias que se lhes exigem. (pablo stolze)
De
fato, dada a intensidade com que as relações contratuais passaram a ser
travadas, tornou-se materialmente impossível que as partes elaborassem o
contrato caso a caso, reflexos da concorrência do mercado.
O
contrato de adesão caracteriza-se por permitir que seu conteúdo seja
preconstruído por uma das partes, eliminada a livre discussão que precede normalmente
à formação dos contratos4.
Diante
disso não se concebem mais demoradas tratativas entre as partes, a não ser
excepcionalmente. A concepção tradicional do contrato como obra de duas partes,
em posição de igualdade, que discutem cláusula por cláusula ainda existe, mas,
em número limitado e geralmente nas relações entre particulares. As exigências
geradas pelo novo tráfico mercantil fizeram com que “se abandonassem as
técnicas negociais em ofertas e contra-oferta, para dar lugar a um mecanismo
mais adequado, mais rápido, ágil e seguro”. A celeridade da contração
pressupõe, para ao atendimento de seus objetivos, um contrato já pronto de
forma a se aplicar ao máximo de pessoas possível. Unido a tal praticidade
propiciada ao consumidor as empresas também ganham vantagens.
A
predisposição de cláusulas e o fechamento de contratos de adesão tornaram-se
inerentes à sociedade industrializada, e já são a maneira normal de concluir
contratos em diversos quadrantes da vida social, notadamente aqueles em que há
superioridade econômica ou técnica entre os contratantes, seja com seus fornecedores,
seja com seus assalariados. Tais foram as alterações desencadeadas nos
processos de produção e distribuição de bens e serviços que, em virtude de a produção
em massa exigir também a comercialização em massa, a contratação se viu
obrigada a perder estigma de demorada negociação em prol de um caráter mais
geral5.
A necessidade de mitigação dos
princípios clássicos aconteceu lentamente no Brasil, mas hoje é acolhido pela
lei e pela sociedade, especialmente no que tange às relações de consumo.
3
Na definição de Fernando Noronha, contratos paritários são aqueles cujo
conteúdo resulta da livre discussão entre os intervenientes. Esta só é possível
quando as partes tem igual possibilidade de fazer valer suas vontades e
salvaguardar os respectivos interesses. Através de concessões reciprocas elas
alcançam um ponto de equilíbrio entre os respectivos direitos e obrigações. (NORONHA,
Fernando. Contratos de consumo padronizados e de adesão. Revista de direito do consumidor, São Paulo, n.20, p 88 a 111)
4
GOMES, Orlando. Ob. cit. p. 109.
5
MARQUES, 2004, p.54
No
Brasil, isso se deu com a edição de normas de ordem pública, como o CDC, que
estabeleceu parâmetros interpretativos e reguladores das relações de consumo,
entendidas como aquelas ocorridas entre fornecedor e consumidor, tendo este
como destinatário final de produtos e serviços. A vontade continua essencial à
formação dos negócios jurídicos, mas a sua importância e força diminuíram,
levando à relativização na noção de força obrigatória (pacta sunt servanda) e
intangibilidade do conteúdo do contrato. É o que dizem os artigos 6º, incisos
IV e V, e 51, ambos do CDC6.
As
condições gerais dos contratos são aqueles contratos, escritos ou não escritos,
em que o comprador aceita, expressa ou tacitamente, que cláusulas,
pré-elaboradas pelo fornecedor, unilateral e uniformemente para um número
indeterminado de relações contratuais, venham a disciplinar o seu contrato
específico7. Trata-se, portanto, de uma técnica de pré-elaboração do
conteúdo de futuros contratos. Surgem impulsionadas por vários fatores
interligados, a exemplo da explosão demográfica, do fenômeno da urbanização e
da conseqüente demanda de bens e serviços em grande escala, da concentração de
capital, do consumo de massa e da impossibilidade de tratamento individual
entre o grande fornecedor e o consumidor final, além da consciência jurídica no
processo de tutela ao consumidor.
6 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...]
IV - a proteção
contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou
desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no
fornecimento de produtos e serviços;
V - a modificação das
cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua
revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras,
as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - impossibilitem,
exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer
natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de
direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa
jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
II - subtraiam ao
consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste
código;
III - transfiram
responsabilidades a terceiros;
IV - estabeleçam
obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
VI - estabeleçam
inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
VII - determinem a
utilização compulsória de arbitragem;
VIII - imponham
representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;
IX - deixem ao
fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o
consumidor;
X - permitam ao
fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
XI - autorizem o
fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja
conferido ao consumidor;
XII - obriguem o
consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual
direito lhe seja conferido contra o fornecedor;
XIII - autorizem o
fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato,
após sua celebração;
XIV - infrinjam ou
possibilitem a violação de normas ambientais;
XV - estejam em
desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
XVI - possibilitem a
renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.
As
condições gerais são predispostas prévia e unilateralmente, dando origem à
uniformização, utilizando-se espaços para serem posteriormente preenchidos com
a individualização do contratante destinatário, sendo muito comum seu emprego
no mercado. Em relação aos contratos nos moldes contemporâneos, que se realizam
em série, a preocupação é a defesa dos aderentes, mediante normas legais que
proíbam normas iníquas, até porque as regras de declaração da vontade e os
vícios de consentimento quase não se aplicam.
Tais
condições gerais dos contratos devem ser de conhecimento do consumidor, quando
não integrantes dos contratos impressos. Trata-se de pura e simples aplicação
do artigo 6º, III, do CDC, que traz o direito básico à informação8. Ainda
que o referido diploma legal não tenha normas específicas a respeito, as
condições gerais dos contratos, mesmo que somente afixadas em lugar visível nos
estabelecimentos comerciais, vão fazer partes da oferta. Assim, o consumidor,
aceitando a oferta, aceita também as suas condições gerais, as quais passam a
integrar o contrato de consumo.
O CDC define o contrato de adesão no artigo 54, in
verbis: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas
pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de
produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar
substancialmente seu conteúdo”. As cláusulas gerais desse contrato são
uniformes, predeterminadas pelo Poder Público ou pelo fornecedor e aplicáveis a
qualquer interessado em adquirir o produto ou serviço por estes ofertados. Não
são, portanto, passiveis de negociação entre as partes contratantes, cabendo ao
consumidor meramente aceitá-las integralmente, se desejar concluir o processo
de contratação. Ademais, o fato de se acrescer uma ou outra cláusula escrita,
no instrumento desse contrato, a respeito de seus elementos(art.54)9.
7
MARQUES, 2004, p.66
8 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...]
III - a informação
adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação
correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como
sobre os riscos que apresentem;
9 Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas
tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas
unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor
possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
§ 1º A inserção de
cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.
Os contratos de adesão pressupõem o poder econômico
desigual a favor de uma das partes, deve-se sempre perquirir se o consumidor,
ao aderir, conhecia o conteúdo ou a extensão da cláusula que lhe é prejudicial
ou mesmo sabendo que era, não teve sua vontade reduzida pela necessidade de
contratar. A relação contratual moderna não pode ser observada sob a
prevalência do aspecto subjetivo, no sentido de buscar a mensagem do
participante mais forte (ou a intenção real de prejudicar), haja vista que se
está lidando com relações de massa, impessoalizadas e dirigidas a um número
imenso de pessoas.
As
condições contratuais, dentro dessa nova realidade, devem ser estudadas sob o
aspecto objetivo, uma vez que os contratos de adesão não envolvem apenas os
interesses das partes, mas de toda a coletividade, que está potencialmente
exposta a se sujeitar aos mesmos.
A regra geral quanto à interpretação
dos contratos de adesão é que se interprete o contrato, especialmente as suas
cláusulas dúbias, contra aquele que redigiu o instrumento. Em se tratando de
uma relação de consumo, tutelada pelo Código de Defesa do Consumidor, tem-se que
as cláusulas contratuais deverão ser interpretadas de maneira mais favorável ao
consumidor, princípio geral da interpretação
“pró-consumidor”10 (art. 47 do CDC)11. Esta
interpretação está prevista no Código Civil de 2000, no artigo 423, que dispõe
expressamente: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou
contraditórias, dever-se-á adotar interpretação mais favorável ao aderente”12.
Nas relações de consumo, o contrato
deve redigido conforme as normas do CDC, as quais são de ordem pública e
interesse social e interrogáveis pela vontade das partes, estabelecendo um
patamar de lealdade e de controle em que a boa-fé passa a ser, objetivamente,
um pensar não em si mesmo, ou em como poderá transferir riscos profissionais
próprios para o outro parceiro, por meio de um contrato, mas sim pensar que o outro
(o consumidor) tem expectativas legítimas.
10
MARQUES, 2005, p.874
11
Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais
favorável ao consumidor.(CDC)
12
MARQUES ainda enfatiza o artigo 5º do CDC: “Em caso de dúvida sobre o sentido
de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável para o consumidor”.
3.
O Código de Defesa do
Consumidor
Esse
Código, destinado à proteção dos consumidores, não poderia ter vindo em momento
mais propício, diante dos crescentes reflexos negativos decorrentes de
desigualdades fáticas e por um instrumental jurídico ineficiente.
O
Código de Defesa do Consumidor rompe, em alguns pontos, com os esquemas
tradicionais, para dotar o consumidor de um sistema protetivo adequado. Dentre outros temas, o Código prevê um
regime de informações claras e precisas ao consumidor; veda as práticas
comerciais consideras abusivas; define e regula os contratos denominados de
adesão; inverte o ônus da prova em prol do consumidor.
O
Código de Defesa do Consumidor, lei n.º 8078 de 199013, é um
complexo de normas para o plano das relações privadas, em que os protagonistas
centrais são, no pólo disponente, o produtor, o fabricante e o intermediário; e
no pólo adquirente, as pessoas físicas ou jurídicas, que se servem dos bens ou
serviços14.
As
relações de consumo não se limitam às situações descritas no contexto do CDC,
pois o legislador fez consignar norma geral que acolhe, como protegidos,
direitos outros reconhecidos aos consumidores em tratados, convenções e em leis
especiais e derivadas de princípios gerais do direito, analogia, costumes,
equidade. Verifica-se uma nítida proteção ao consumidor, em vista das
distorções detectadas, da posição de desvantagem em que se encontra em face dos
complexos empresariais.
Enfim,
apesar de extremamente retardatário, pois já se discute isso no mundo há
décadas, o Código vem atender a uma demanda crescente dos consumidores, face à
existência dos contratos de adesão e das muitas cláusulas dotadas de
abusividade embutidas nos contratos. O código tem por fim estabelecer o
equilíbrio contratual, invocando o princípio da boa- fé e da equidade, ou seja,
da função social do contrato.
13“Desde
meados da década de 70 que existe em nosso país a ideia de constituição de um
corpo orgânico de normas de proteção ao consumidor, resultado do frágil regime
até então vigente, de ineficientes intervenções estatais nas relações de
consumo.” (GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 16 Ed., 1995.
p.04).
14
GARMS, São Paulo, 2002.
3.1 Cláusulas Abusivas
Antes
do CDC, as cláusulas abusivas eram disciplinadas de maneira esparsa no direito
positivo pátrio. O Poder Judiciário recorria às regras gerais contidas nos
arts. 4º
e 5º15 da Lei de Introdução ao Código
Civil para suprir essa lacuna, decidindo de acordo com a analogia, valendo-se
do direito comparado, e, ainda, atendendo aos fins sociais e as exigências do
bem comum, utilizava-se, também, do art. 85 do Código Civil de 191616.
Os contratos de adesão, reflexos da necessidade
econômico-social e da realidade de um mundo globalizado, apresentam inúmeras
vantagens, possibilitando a uniformidade, a redução dos custos, a
racionalização contratual. Entretanto,
também que existem desvantagens para os contratos de adesão, dentre as quais as
cláusulas abusivas. Tal margem às cláusulas abusivas é o grande problema do
contrato de adesão, colocando o consumidor em desvantagem, sendo assim incompatíveis
com a boa fé. Esse é o momento de intervenção do Estado, por via legislativa,
administrativa ou jurisprudencial, para proteger os consumidores, tornando
nulas essas cláusulas dotadas de abusividade.
O artigo 51 do CDC traz a previsão
de nulidade das cláusulas abusivas, que elenca em seus incisos algumas dessas
cláusulas. Tal código tem por fim estabelecer o equilíbrio contratual,
invocando o princípio da boa- fé e da equidade, ou seja, da função social do
contrato. Prevê-se e busca-se um regime protetivo onde a Administração pública
e a privada possam equilibrar as relações de consumo.
Na definição de Fernando Noronha “abusivas
são cláusulas que, em contratos entre as partes de desigual força, reduzem
unilateralmente as obrigações do contratante mais forte ou agravam as do mais
fraco, criando uma situação de grave desequilíbrio entre elas. [...] são
cláusulas que destroem a relação de equivalência entre prestação e
contraprestação”17.
15
Art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (Lei de Introdução ao
Código Civil).
Art. 5º: Na aplicação da lei, o juiz atenderá
aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
16
Art. 85: “Nas declarações de vontade se atenderá
mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem” (Código Civil de 1916).
17
NORONHA, São Paulo, 1996.
“A
abusividade da cláusula contratual é o descompasso de direitos e obrigações
entre os contratantes, direitos e obrigações típicos daquele tipo de contrato,
é a unilateralidade excessiva, é o desequilíbrio contrário à essência, ao
objetivo contratual, ao interesses básicos presentes naquele tipo de relação, é
a autorização da atuação desleal, maliciosa, de má-fé subjetiva, que esta
cláusula, se cumprida, irá ocasionar. A presença da cláusula abusiva no
contrato celebrado ou na relação individual é que a torna atual; é a execução
do contrato que vai esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual. A
cláusula abusiva é uma “bomba-relógio”, pronta para agir, para desequilibrar,
para impedir a realização do objetivo do contrato, para lesar o contratante
mais fraco. Em outras palavras, a estipulação de cláusulas abusivas é
concomitante com a celebração dos contratos, mas a descoberta de sua
abusividade é geralmente posterior, é atividade do interprete do contrato, do
aplicador da lei, face ao reclamos daquele que, ao executar o contrato,
verificou o abuso cometido18.”
Constitui
um dos direitos básicos do consumidor a repressão às cláusulas abusivas,
conforme dispõe o artigo 6º, inciso IV, do CDC19. Tal repressão também está presente no artigo 4º,
incisos I e III, do CDC20, através do reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
O
CDC traz em apenas um elenco exemplificativo no seu artigo das cláusulas
abusivas, enumerando o que significa dizer que outras cláusulas podem ser
consideradas abusivas. O Código institui uma cláusula geral, prevista no artigo
51, inciso IV, por meio do qual possa ser aferida a abusividade das cláusulas
contratuais, ao permitir seu controle diante de uma situação concreta
insusceptível de ser enquadrada em qualquer uma das hipóteses de cláusulas
abusivas previstas no rol do presente artigo.
18
MARQUES, 2005, p.63
19 Art. 6º: São
direitos básicos do consumidor:
IV - a proteção
contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou
desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no
fornecimento de produtos e serviços;
20 Art. 4º: A Política Nacional das Relações de Consumo
tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à
sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das
relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei
nº 9.008 , de 21.3.1995)
I - reconhecimento
da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
III - harmonização
dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e
tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre
consumidores e fornecedores;
O
princípio da boa-fé previsto no artigo 4º, inciso III, do CDC, que consagra
a harmonização dos interesses dos
participantes nas relações de consumo e compatibilização da proteção do
consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de
modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170
da CF)21, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações de
consumo entre consumidores e fornecedores.
A união do artigo 51, inciso IV, com
o princípio da boa-fé objetiva consagrado no artigo 4º, inciso III, do CDC,
permite concluir que o núcleo da abusividade das cláusulas contratuais do
artigo 51 está na existência de cláusulas contratuais que coloquem o consumidor
em desvantagem exagerada perante o fornecedor22. Já inciso III do
referido artigo 4º, a boa-fé aparece como um princípio orientador da
interpretação, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de
consumo. O princípio da boa-fé está também mencionado no texto como critério
auxiliar para a viabilização dos ditames constitucionais sobre a ordem
econômica, com referencia expressa ao art. 170 da CF. Este último aspecto
consiste na vinculação da boa-fé aos princípios socioeconômicos que presidem o
ordenamento jurídico nacional.
21 Art. 170 CF: A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
I - soberania
nacional;
II - propriedade
privada;
III - função social
da propriedade;
IV - livre
concorrência;
V - defesa do
consumidor;
VI - defesa do meio
ambiente;
VI - defesa do meio
ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação;
VII - redução das
desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do
pleno emprego;
IX - tratamento
favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.
IX - tratamento
favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
Parágrafo único. É
assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos
em lei.
22
BELMONTE afirma que “o artigo 51, inciso IV, do
CDC, determina a proibição de cláusulas abusivas que estabeleçam obrigações
consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou equidade”.(São Paulo, p.53)
4.
O princípio da boa- fé
objetiva como instrumento proteção contra cláusulas abusivas na lei
consumerista.
4.1 Boa-fé objetiva
A
boa-fé estampada no artigo 4º, inciso III é princípio da Lei n. 8.078.
Retornará no art. 51 como cláusula geral (inciso IV). A que a lei consumerista
incorpora é a chamada boa-fé objetiva, diversa da subjetiva.
A
boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato
modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença
sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua
legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé
pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no
art. 1.56123, quando trata dos efeitos do casamento putativo, nos
arts. 1.20124 e 1.20225, que regulam a posse de boa-fé,
no art. 87926, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel
indevidamente recebido etc.
Já
a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC, pode ser definida, grosso modo, como sendo uma regra de
conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de
honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de
consumo. Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o equilíbrio
das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres
das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças.
23
“Art. 1.561: Embora anulável, ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos
os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os
efeitos civis até ao dia da sentença anulatória. § 1º Se um só dos cônjuges
estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos
filhos aproveitarão.
§2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao
celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão”.
24
“Art. 1.201: É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo
que lhe impede a aquisição da coisa.
Parágrafo
único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo
prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
25
“Art. 1.202: A posse de boa-fé só perde este caráter
no caso e desde o momento em que as circunstâncias
façam
presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente”.
26
“Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um
imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela
quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por
perdas e danos. Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito,
ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe
ao que pagou por erro o direito de reivindicação.”
Entretanto,
para chegar a um equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de
uma cláusula em relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado
para um não o será para outro.
A
boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, que não depende de forma
alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor.
Deste modo, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel,
leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito
à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem
causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no
contrato, realizando os interesses das partes.
Em
suma, a boa-fé objetiva pode ser traduzida, ainda, como dever de ostentação da
lealdade contratual, além de ser, também, um limitador para a autonomia da
vontade27.
A
boa-fé objetiva é uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal.
Toda vez que no caso concreto, por exemplo, o magistrado tiver de avaliar o
caso para identificar algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa
condição ideal a priori, na
qual as partes respeitam-se mutuamente, de forma adequada e justa.
O
princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem, então, como
função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica,
compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do
consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico.
Com
isso, tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa do débil, mas sim
como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica,
que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais do art. 170 sua
razão de ser.
Mas,
não é só isso, há de se levar em conta o princípio da boa-fé objetiva no papel
que ele desempenha na construção do próprio sistema jurídico, assim como na
aplicação efetiva dos demais princípios e normas jurídicas, todos suporte do
modelo da sociedade capitalista contemporânea.
27
Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos contratos
típicos e atípicos. Pág. 28. “A boa-fé é um estado de espírito que leva o
sujeito a praticar um negócio em clima de aparente segurança. É a boa-fé subjetiva”.
A
norma do inciso IV do mesmo art. 6º proíbe incondicionalmente as práticas e as
cláusulas abusivas. A ideia da abusividade tem relação com a doutrina do abuso
do direito. Foi a constatação de que o titular de um direito subjetivo pode
dele abusar no seu exercício que acabou por levar o legislador a tipificar
certas ações como abusivas. Quando o Código de Defesa do Consumidor procura
reprimir as cláusulas contratuais abusivas, o que se tem em vista não é evitar
o abuso de direito, mas busca-se impedir a estipulação de cláusulas contratuais
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada perante o fornecedor.
A
análise dos princípios estabelecidos pelo art . 4º e pelo art . 51, IV do CDC
autoriza a conclusão segundo a qual o equilíbrio nas relações de consumo é
princípio básico que o código houve por bem estabelecer. Não se trata, como é
óbvio, de equilíbrio das posições econômicas, mas de equilíbrio das posições
contratuais, o que significa, em outras palavras, evitar que a predisposição
unilateral das cláusulas contratuais degenere em abuso. É nesse sentido que
deve ser entendida a parte final do n. III do art. 6º do CDC, que assegura ao
consumidor a liberdade de escolha e a igualdade nas relações contratuais.
4.2 Teoria do abuso do direito x nulidade das cláusulas
contratuais abusivas
Preliminarmente,
diga-se, a expressão é abuso “do” direito e não abuso “de” direito, porquanto
se abusa de certo direito que se tem. O uso do “do” como contração da
preposição “de” e do artigo “o” é designativo do direito do qual se abusa.
Muito
atacada, aos poucos a teoria do abuso do direito foi-se firmando, sendo hoje
aceita pela doutrina e pela jurisprudência. Anteriormente dizia-se que a
expressão “abuso do direito” era logomáquica, isto é, continha palavreado
inútil, pois, se se tem direito, não se tem abuso. Este seria já o não direito,
o antidireito ou o ato ilícito. Logo, abuso não seria direito, e, em
contrapartida, quem tem direito exerce-o, e não pode estar abusando ao
exercê-lo.
Acontece
que a prática real do exercício dos vários direitos subjetivos acabou por
demonstrar que, em alguns casos, não havia ato ilícito, mas era o próprio
exercício do direito em si que se caracterizava como abusivo.
A
teoria do abuso do direito, então, ganhou força e passou a preponderar. Pode-se
definir o abuso do direito como o resultado do excesso de exercício de um
direito, capaz de causar dano a outrem. Ou, em outras palavras, o abuso do
direito se caracteriza pelo uso irregular e desviante do direito em seu exercício,
por parte do titular.
Na
realidade, a doutrina do abuso do direito tem sido muito importante,
especialmente pela influência que exerceu e exerce sobre os legisladores.
Muitas normas jurídicas acabaram por incorporar em seus diplomas legais as
práticas abusivas, para proibi-las.
Aliás,
ainda que não abertamente, o próprio Código Civil brasileiro de 1916 já admitia
de forma indireta a possibilidade da existência do abuso do direito. Isto
porque, no art. 160, I28, havia o reconhecimento de que o exercício regular
de um direito não constitui ato ilícito.
Logo,
a contrario sensu, o exercício
irregular, isto é, abusivo poderia
caracterizar-se como ilícito no sistema do Código Civil de 1916. O Código Civil de 2002, em seu art. 18729,
trouxe expressamente a proibição ao abuso de direito, dispondo que “também
comete ao ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes”.
Antes do novo Código Civil, o CDC
proibiu explicitamente o abuso do direito, ao nulificar as cláusulas
contratuais abusivas, tornando-as ilícitas. A legislação brasileira, adotando a
doutrina do abuso do direito, acabou por regular uma série de ações e condutas
que outrora eram tidas como meras práticas abusivas, tornando-as ilícitas. E o
exemplo mais atual disso são as normas do CDC que proíbem o abuso e nulificam
as cláusulas contratuais abusivas.
Assim, a proibição das práticas
abusivas é absoluta, e o contexto normativo da lei consumerista apresenta rol
exemplificativo delas nos arts. 39, 40, 41, 42, etc. Na esteira da proibição
das práticas abusivas, no mesmo inciso IV do art. 6º, como não poderia deixar
de ser, a Lei n. 8.078 veda a elaboração de cláusulas contratuais abusivas.
Nessa linha de conduta, então, o CDC tacha de nulas todas as cláusulas abusivas.
28“Art.
160. Não constituem atos ilícitos:
I
— os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido”. (Código Civil 2002)
29
Art. 187: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou
social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
(Código Civil 2002)
5.
Considerações Finais
Conforme
analisamos ao longo do presente artigo, o Direito é profundamente influenciado
pela economia e pela realidade social. As necessidades de um mundo globalizado
já não mais suportavam que, nas relações de consumo, especialmente, os
contratos tivessem suas cláusulas discutidas previamente. Como resposta a esse
anseio econômico-social, tem-se os contratos de adesão, que é aquele no qual
não há discussão prévia a respeito das cláusulas, cabendo a uma parte aderir
totalmente à vontade da outra.
As
relações de consumo, em quase sua totalidade, são realizadas por meio de
contratos de adesão. O Direito do Consumidor passou, então, a ser um elemento
importante de afirmação da cidadania, ditando o tom do regime jurídico e legal
das condições gerais dos contratos.
Os
contratos de adesão oferecem inúmeras vantagens às relações contratuais,
especialmente às relações de consumo, dentre as quais a racionalização
contratual, a redução de custos e a uniformidade. Entretanto, em virtude de ter
suas cláusulas predispostas por apenas uma das partes, a mais forte, dá margem
à existência de cláusulas abusivas, isto é, que atentem à boa fé e coloquem o
consumidor em posição mais desfavorável do que a já possuída.
Neste
sentido surge o Código de Defesa do Consumidor, com o objetivo de proteger
integralmente o consumidor em face do fornecedor, determinando que se cumpra a
igualdade contratual. Desta forma, no controle das cláusulas contratuais,
prevalecerá a boa fé. Excedendo tal princípio, será considerada abusiva e sem
eficácia.
Tratou-se
portanto que os contratos de adesão refletem uma realidade dos dias atuais,
como forma de simplificar e otimizar relações contratuais, especialmente as de
consumo. Não deve ser lembrado apenas pelas suas desvantagens, como a
possibilidade da existência de cláusulas abusivas, mas, pelo contrário, deve-se
buscar a cada dia, o aperfeiçoamento desses contratos, através de leis
específicas e por meio do controle e da intervenção estatal, no sentido de
manter íntegros os princípios da boa fé e da igualdade contratual.
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