domingo, 11 de novembro de 2012

A VENDA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E SUA REPERCUSSÃO JURÍDICA

Gleiciane Ferraz de Sousa Levino[1]

 
RESUMO 

O Código Civil Brasileiro estabelece uma regulamentação própria sobre a alienação de estabelecimento empresarial, conhecida como trespasse. A alienação de estabelecimento empresarial é a venda ou o aluguel de um complexo de bens organizado, para exercício de uma empresa. O presente artigo vem abordar a discussão jurídica acerca dessa regulamentação e outros aspectos decorrentes da venda de estabelecimento empresarial como responsabilidade, insolvência, concorrência, aviamento, entre outros.


1 INTRODUÇÃO

Antes de adentrarmos no mérito sobre a venda de estabelecimento empresarial, é importante descrever o conceito de estabelecimento empresarial que está previsto no artigo 1.142 do Código Civil Brasileiro. Estabelecimento empresarial é um complexo de bens organizado, para o exercício da empresa. Esse artigo vem esclarecer o que muitas pessoas confundem que é o fato de relacionarem o estabelecimento comercial somente com o imóvel. Gonçalves (2011) registra em sua obra o seguinte comentário:
 

Pelo estatuto civil, estabelecimento é o “complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Veja-se, portanto, que o estabelecimento consagra a reunião, de forma organizada, de todos os instrumentos voltados ao desenvolvimento da atividade empresarial e à obtenção de lucro (GONÇALVES, 2011, p. 39).

            De acordo com a doutrina majoritária o estabelecimento empresarial é também chamado de fundo de comércio, azienda ou fundo empresarial.  Coelho (2011) não compartilha dessa idéia, para ele estabelecimento empresarial é diferente de fundo de comércio. Vejamos o que diz o doutrinador:


No meio jurídico, adota-se ora a expressão “fundo de comércio” [ ...]. Prefiro falar em “fundo de empresa”, tendo em vista que o mesmo fato econômico e suas repercussões jurídicas se verificam na organização de estabelecimento de qualquer atividade empresarial. Registro que não é correto tomar por sinônimos “estabelecimento empresarial” e “fundo de empresa”. Este é um atributo daquele; não são, portanto, a mesma coisa. Precise-se: o estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o empresário reúne para explorar uma atividade econômica, e o fundo de empresa é o valor agregado ao referido conjunto, em razão da mesma atividade (COELHO, 2011, p. 114).
                                                   
O estabelecimento empresarial é composto de bens que podem ser corpóreos (sede da empresa, terrenos, depósitos, maquinário utilizado para a produção de seus produtos, matérias-primas etc.) ou incorpóreos (a marca, o nome empresarial, a patente, o ponto comercial, o direito de renovação compulsória do contrato locatício etc.).

É uma universalidade, mas não se trata de bens destinados a um fim determinado em lei (universalidade de direito), mas de um conjunto de bens com finalidade vinculada à vontade do empresário (universalidade de fato). Portanto, esse conjunto de bens corpóreos e incorpóreos, constitui uma universalidade de fato, que pode ser objeto de negócios jurídicos, como a alienação.  


2 DESENVOLVIMENTO

O art. 1.143 do Código Civil afirma que o estabelecimento é objeto de direito, dessa forma, pode ser celebrado um contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou o arrendamento de estabelecimento. Não se pode confundir esse conjunto de bens com sujeito de direito, pois este é o empresário, é quem explora a atividade.

A venda de estabelecimento empresarial recebe o nome doutrinário de “trespasse”. É o nome do contrato de compra e venda de estabelecimento empresarial.  Segundo Coelho (2011), no trespasse o estabelecimento empresarial deixa de integrar o patrimônio de um empresário e passa para o de outro. O objeto da venda é o complexo de bens corpóreos e incorpóreos, envolvidos com a exploração de uma atividade empresarial.

Portanto, trespasse é a alienação de estabelecimento de um empresário individual ou sociedade empresária a outro que irá prosseguir com a exploração da atividade empresarial.

A transferência do estabelecimento, salvo disposição em contrário, importa ainda em sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração daquele, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros contratantes rescindir o contrato em 90 dias, a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, nesse caso, a responsabilidade do alienante (art. 1.148).

Assim, aquele que adquire um estabelecimento empresarial fica responsável pelos débitos anteriores à aquisição, se regularmente contabilizados, assim como os contratos celebrados, conforme bem explica Gonçalves (2011):
 
O trespasse implica a transferência do conjunto de bens organizados pelo alienante ao adquirente, de modo que este possa prosseguir com a exploração da atividade empresarial. Ele assumirá a posição do empresário primitivo, devendo arcar com todos os contratos já celebrados por este, por força da atividade desenvolvida (GONÇALVES, 2011, p. 40). 

No entanto, o trespasse não inclui cessão automática do contrato de locação, que deverá ser autorizado pelo locador, pois o contrato de locação é regulado por lei específica que diz que o locador precisa autorizar a sub-rogação.

Há a sub-rogação automática do empresário nos contratos de caráter pessoal, mas não há essa sub-rogação nos contratos de locação, devido essa espécie ser disciplinada na a lei de locação. Logo a Lei 8.245/91 – Lei de Locação em seu Art. 13 descreve que o locador precisa autorizar a sub-rogação para que esta seja válida. O enunciado 234 do Conselho da Justiça Federal expressa esse entendimento.
 
Nesse sentido se manifestou o Superior Tribunal de Justiça ao julgar um recurso especial, abaixo transcrito:

RECURSO ESPECIAL. TRANSFERÊNCIA DO FUNDO DE COMÉRCIO. TRESPASSE. CONTRATO DE LOCAÇÃO. ART. 13. DA LEI N. 8.245/91. APLICAÇÃO À LOCAÇÃO COMERCIAL. CONSENTIMENTO DO LOCADOR. REQUISITO ESSENCIAL. RECURSO PROVIDO. 1. Transferência do fundo de comércio. Trespasse. Efeitos: continuidade do processo produtivo; manutenção dos postos de trabalho; circulação de ativos econômicos. 2. Contrato de locação. Locador. Avaliação de características individuais do futuro inquilino. Capacidade financeira e idoneidade moral.  Inspeção extensível, também, ao eventual prestador da garantia fidejussória. Natureza pessoal do contrato de locação. 3. Desenvolvimento econômico. Aspectos necessários: proteção ao direito de propriedade e a segurança jurídica. 4. Afigura-se destemperado o entendimento de que o art. 13 da Lei do Inquilinato não tenha aplicação às locações comerciais, pois, prevalecendo este posicionamento, o proprietário do imóvel estaria ao alvedrio do inquilino, já que segundo a conveniência deste, o locador se veria compelido a honrar o ajustado com pessoa diversa daquela constante do instrumento, que não rara as vezes, não possuirá as qualidades essenciais exigidas pelo dono do bem locado (capacidade financeira e idoneidade moral) para o cumprir o avençado. 5. Liberdade de contratar. As pessoas em geral possuem plena liberdade na escolha da parte com quem irão assumir obrigações e, em contrapartida, gozar de direitos, sendo vedado qualquer disposição que obrigue o sujeito a contratar contra a sua vontade. 6. Aluguéis. Fonte de renda única ou complementar para inúmeros cidadãos. Necessidade de proteção especial pelo ordenamento jurídico. 7. Art. 13 da Lei n. 8.245/914 aplicável às locações comerciais. 8. Recurso especial provido. (STJ. 3ª Turma. REsp 1202077/MS . Rel. Min. Vasco Della Giustina. Julgamento: 01.03.2011. DJe 10.03.2011, sem grifos no original).

Então, o empresário, para fins de preservar a integridade de seu investimento, deverá segundo Coelho (2011, p. 138) “ao locar imóvel para a instalação da empresa, deve negociar com o locador a inserção, no contrato de locação, da anuência prévia para eventual cessão que contemple a sub-rogação”.

Coelho (2011) atenta para o fato de que com o trespasse há a transferência de titularidade, todavia em caso de aquisição de quotas de sócio por outra pessoa não há transferência de titularidade, não há contrato de trespasse, mas um contrato de cessão de quotas.

É importante mencionarmos que estabelecimento é diferente de patrimônio, para diferenciarmos um contrato de trespasse de um contrato de compra e venda.  Podemos perceber que existe essa distinção quando observamos o Enunciado 233 CJF que declara que o imóvel alugado integra o patrimônio da empresa, mas não integra o estabelecimento.

A dúvida sobre essa diferença pode ser gerada quando a empresa possui, por exemplo, dois estabelecimentos e resolver vender um, ocorre nesse caso o trespasse, mas se a empresa resolve vender o imóvel de um dos estabelecimentos se trata de contrato de compra e venda, pois esse imóvel integra apenas o patrimônio da empresa. Por outro lado, a venda de bem essencial ao exercício da atividade empresarial configura a venda do estabelecimento ou seja o trespasse.

A responsabilidade pelas dívidas anteriores do estabelecimento está disciplinada no Art. 1.148 do CC/02. O referido artigo declara que somente as dívidas contabilizadas que serão repassadas ao adquirente. Caso não esteja regularmente contabilizada ele não responde.

No entanto, existem exceções quando se trata de dívidas trabalhistas e tributárias, pois possuem regras próprias trazidas pelos artigos 1º e 448º da CLT e o Art. 133 do Código Tributário Nacional.

A lei determina que o devedor responde pela dívida de forma solidária com o adquirente pelo prazo de um ano. Se a dívida for vencida, conta-se um ano da publicação. Considera-se o momento da publicação, por exemplo, quando se faz um contrato de compra e venda e registra o mesmo na junta comercial. Se a dívida for vincenda, conta-se um ano da data do vencimento.

Quanto à insolvência, o estabelecimento empresarial é uma das principais garantias dos credores da empresa. Em caso de inadimplência poderão executar esse patrimônio. Por essa razão, ele não pode ser vendido sem que a empresa conserve bens suficientes para pagar suas dívidas, ou sem a concordância de seus credores de modo expresso ou tácito, em 30 dias, a contar da sua notificação, caso contrário, eles perdem a garantia que possuem (art. 1.145).

Portanto, para uma venda segura do estabelecimento, deve-se em primeiro lugar quitar todas as dívidas junto aos credores, através de notificação, ou buscar o consentimento deles para a venda. Se a empresa vender o bem, tornando-se insolvente e não pagar os credores, o contrato de trespasse não terá eficácia. O devedor que comprou o estabelecimento terá que devolver o bem, voltando tudo como era antes.

Também está prevista essa situação na Lei de Falência, n. 11.101/2005, art. 94, III, c, nos casos de venda fraudulenta de estabelecimento, isto é, sua venda sem a anuência de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo.
 
Nesse processo de venda não podemos esquecer do instituto da concorrência para o alienante que em regra geral deve ser regulado por cláusula expressa no contrato de trespasse. Todavia se o contrato de trespasse for omisso, aplica-se a regra do Art. 1.147, CC/02. Este significa que o alienante não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes a transferência.

O motivo para tal proibição seria a concorrência desleal com o adquirente de seu antigo estabelecimento, o qual encontraria profundas dificuldades em desenvolver a atividade, pois o alienante acabaria atraindo para o novo local de seus negócios a clientela que formou no antigo. O parágrafo único do art. 1.147 do CC/02 dispõe que esse desvio de clientela estende-se também às hipóteses de arrendamento e usufruto do estabelecimento durante o prazo desses contratos

Não se pode levar uma interpretação literal e restrita dessa regra, pois sempre se deve analisar o caso concreto. A definição de concorrência muda com cada circunstância fática. Por exemplo, uma rua movimentada e cheia de comercio fica amenizada a questão da concorrência, mas um estabelecimento em uma cidade do interior que possui um comércio pequeno a versão de concorrência é mais relevante.

Quanto à penhora do estabelecimento empresarial a Súmula 451 do Superior Tribunal de Justiça diz: “é legítima a penhora da sede do estabelecimento comercial”. O julgado, abaixo citado, que embasou referida súmula é completo e conciso além de bastante esclarecedor:

“1. A penhora de imóvel no qual se localiza o estabelecimento da empresa é, excepcionalmente, permitida, quando inexistentes outros bens passíveis de penhora e desde que não seja servil à residência da família. 2. O artigo 649, V, do CPC, com a redação dada pela Lei n. 11.382/2006, dispõe que são absolutamente impenhoráveis os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão. 3. A interpretação teleológica do artigo 649, V, do CPC, em observância aos princípios fundamentais constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (artigo 1º, incisos III e IV, da CF/88) e do direito fundamental de propriedade limitado à sua função social (artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da CF/88), legitima a inferência de que o imóvel profissional constitui instrumento necessário ou útil ao desenvolvimento da atividade objeto do contrato social, máxime quando se tratar de pequenas empresas, empresas de pequeno porte ou firma individual. 4. Ademais, o Código Civil de 2002 preceitua que: ‘Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária’.5. Conseqüentemente, o ‘estabelecimento’ compreende o conjunto de bens, materiais e imateriais, necessários ao atendimento do objetivo econômico pretendido, entre os quais se insere o imóvel onde se realiza a atividade empresarial. 6. A Lei n. 6.830/80, em seu artigo 11, § 1º, DIREITO COMERCIAL — DIREITO DE EMPRESA E SOCIEDADES EMPRESÁRIAS 43 determina que, excepcionalmente, a penhora poderá recair sobre o estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, regra especial aplicável à execução” (STJ, REsp 1.147.767/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 4-2- 2010, sem grifos no original).

O entendimento do julgado acima pode ser concluído no sentido de que a penhora do estabelecimento não passou a ser a regra, pois é cabível apenas quando inexistentes outros bens e desde que não seja utilizado como residência da família do empresário.

Por fim, algo muito importante que deve ser considerado no momento da venda do estabelecimento é o chamado aviamento ou goodwill. Segundo Oscar Barreto Filho, doutrina majoritária, aviamento é o potencial de lucratividade do estabelecimento, é um atributo do estabelecimento, e não seu elemento constitutivo. O valor do aviamento entra no calculo do valor ajustado no contrato de trespasse, pois ele compõe o estabelecimento, considerado um bem incorpóreo.

Muitas pessoas confundem aviamento com clientela, mas são institutos diferentes, porém são intimamente interligados. Segundo Coelho (2011) “Clientela é o conjunto de pessoas que habitualmente consomem os produtos ou serviços fornecidos por um empresário”. O potencial e sucesso de um estabelecimento depende de uma boa clientela, mas a clientela não integra o estabelecimento e portanto impossível de ser vendida.


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Código Civil de 2002 regulamentou a alienação do estabelecimento empresarial de forma bem específica, o trespasse, conferindo tutela jurídica ao estabelecimento de que já havia ocorrendo na doutrina e na jurisprudência. Uma interpretação mais restritiva das novas normas se faz necessária para atender os desejos da lei no sentido de que não haja fraude decorrente de débitos do alienante. Respeitando as premissas estipuladas em lei o estabelecimento se torna um instrumento prático para a alienação de ativos empresariais.

 

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1: direito de empresa / Fábio Ulhoa Coelho. — 15. ed. — São Paulo: Saraiva, 2011.
 
GONÇALVES, Maria Gabriela Venturoti Perrotta Rios. Direito comercial: direito de empresa e sociedades empresárias – 4. ed. – São Paulo : Saraiva,2011. – (Coleção sinopses jurídicas; v. 21) 

JUSBRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª turma. REsp 1202077/MS . Rel. Min. Vasco Della Giustina. Julgamento: 01.03.2011. DJe 10.03.2011. Disponível em <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=trespasse&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em 20.09.2012

Vade Mecum Compacto de Sireito Rideel / Obra coletiva de autoria da Editora Rideel. – 3. Ed. – São Paulo: Rideel, 2012. – (Série Vade Mecum)

           


[1] Acadêmica do curso de direito da Universidade Estadual de Roraima (UERR). Email: Ferraz.gleiciane@gmail.com

Um comentário:

  1. Olá Gleiciane,

    Parabéns pelo excelente artigo. Você foi muito feliz na escolha do tema e abordagem do assunto.
    Contudo, gostaria de fazer algumas pequenas observações:

    a) Em regra, introdução e conclusão não comportam citações. A introdução representa a porta de entrada para o resultado de um trabalho, ela tem a função de conduzir o leitor para um contato inicial com o objeto da pesquisa. Deve ser um convite para que o leitor se aventure na leitura completa do texto.

    b) O seu artigo, embora bem elaborado, esqueceu a introdução e partiu logo para o que poderíamos chamar de primeiro tópico (conceito de estabelecimento empresarial).

    c) Você teria sido mais feliz se tivesse dividido o desenvolvimento em tópicos. Isso faz com que a leitura se torne mais "leve". Embora seu estilo de escrita seja muito bom.

    d) No penúltimo parágrafo do desenvolvimento você cita Oscar Barreto Filho, contudo não é possível identificar esse autor na referência bibliográfica . Se é caso de apud deve ser feita a devida citação segundo as normas da ABNT.

    Abraço.

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